Ouro — Parte 2

segunda-feira, 8 de abril de 2019


[TW: Dependência química.]

Faziam alguns dias desde que Helena havia saído daquela situação que demonstrava meu fracasso. No entanto, no dia que ela despertou me agradeceu, choramos juntas abraçadas. Tudo isso, dentro da minha cabeça gerava um parafuso absurdo, claro, não podia demonstrar na frente dela minha confusão mental. Por isso me atinha aos meus clientes e, nesse exato momento, às tarefas de casa. Enquanto eu terminava de limpar a louça do almoço ela estava fixa na frente da televisão, mal piscava. Aquele silêncio dela me sufocava profundamente e eu não via forma de romper aquela muralha que ela tentava colocar entre a gente. Era como se ela estivesse sabotando nossa relação pra eu largar ela à própria sorte. Ela não teria isso, não enquanto eu pudesse respirar. Cozinha em ordem me sentei ao lado dela no sofá. Ela não moveu um músculo. Em dois minutos entendi a dinâmica do programa sobre pessoas tentando sobreviver na selva por conta própria. No intervalo não aguentei mais e rompi o silêncio.

- Sabia que odeio te ver calada?

Ela não respondeu. Não se moveu. Parecia uma estátua de cera deixada no lugar da Helena verdadeira. A única coisa que diferenciava ela de uma réplica em tamanho natural era a respiração e eventuais piscadas. Depois de dois minutos resolvi insistir.

- Sério, odeio te ver quieta assim.

- É? - Ela falou movendo apenas os músculos necessários para tal ato, sem se virar - E o que quer que eu fale?

- Não sei - Eu realmente não sabia puxar assunto, por isso a raposa era tão útil, embora devesse usar menos - Que tal sobre o que estamos assistindo?

- Francamente, Janaína - Ela soltou um suspiro longo - Às vezes você me cansa.

- Canso? - Eu senti que explodiria, minha pulsação acelerou, meu sangue começou a borbulhar, mas respirei fundo, controle - Tomou seus remédios?

- Claro que tomei - Ela me olhou, os olhos dela tinham uma fúria, uma raiva que eu não esperava vindos dela, pelo menos não na minha direção - Ou acha o quê? Que quero ficar presa nessa merda de casa pra sempre?

Foi a explosão que eu não queria ter visto. Não agora. Eu não estava total e emocionalmente recuperada dos últimos acontecimentos. Mesmo com as lágrimas querendo me subir pela garganta eu sorri virando o olhar para a tela, o intervalo acabou. Ela virou o olhar também, parecia interessada no assunto do programa. Era como se Helena tivesse picos de estresse, pequenas explosões e eu, como era a única pessoa que ela via todos os dias, era quem tinha de ser do esquadrão antibombas inteiro. Não vi absolutamente nada do programa. Via borrões e fragmentos de som às vezes rompiam meu pensamento acelerado.

Helena estava do meu lado esquerdo. Meu maxilar inferior tremia, a visão completamente turva e aquele gosto ferroso na boca. Por dentro eu estava me dando tapas na cara. "Engole esse choro, Janaína, você não é mais menina. Você precisa ser forte. Você foi forjada na dor pra ser forte." decididamente a voz da raposa às vezes me trazia uma espécie de lucidez tortuosa. A vinheta chamou para o intervalo seguinte já anunciando a próxima atração, alguma coisa relativa com restauração de carros antigos.

- Que bom - A voz ameaçou sair embargada pelo choro, resolvi deixar a raposa assumir um instante, depois recolocava ela na coleira - Me preocupo com você.

- Se fosse verdade me deixaria ir.

- Não te deixo ir porque me preocupo.

- Sabe que isso é um paradoxo - Ela me olhou de canto de olho, parecia pronta a desatar num riso - Não é mesmo?

- Claro que é - puxei a coleira da raposa de volta para sua gaiola - por isso existimos.

- E por isso sobrevivemos.

- Por isso sobrevivemos...

Concordei com ela sendo brindada pela abertura do programa seguinte enquanto Helena soltava um riso curto. Eu ainda precisava aprender a lidar com essas mudanças repentinas de humor. Mas, como ela disse, sobreviveríamos.

Ouro — parte I

sábado, 6 de abril de 2019

[TW: Dependência química.]
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— Sabe que não é assim que vai resolver isso. Você não vai encontrar nada, Hel, e não vai sair daqui. Conversa comigo. — Disse Janaína a Helena tentando esconder o tom angustiado e assustado por ver a amiga em tamanho surto.

Helena passou por Janaína como se não tivesse ouvido uma palavra. Tremula, voraz, quase em transe, seguia revirando os bolsos de todas as calças e casacos que encontrava em busca de alguns trocados, uma cópia das chaves ou quem sabe um celular. Um celular seria útil. Talvez alguém pudesse passar algo pela fresta da janela do banheiro, já que Janaína ficaria atenta à janela da cozinha. Mas era utopia demais acreditar que Janaína marcaria tamanha bobeira. Estava esperta desde a última overdose. Era cuidadosa em excesso. "O jeito seria esperar Janaína cair no sono ou ir em um daqueles encontros misteriosos dela e então dar uma escapada rápida, só mais um vez não faria tão mal" pensou Helena ao tirar três notas de vinte reais do bolso de uma velha camisa xadrez no fundo do armário, a qual mal lembrava da existência. Seus olhos brilharam ao contemplar as notas. Helena sentia o corpo doer e arrepiar constantemente. Três notas que naquele momento apareceram como vislumbre de um alívio imenso.
Instintivamente, saiu andando rumo a porta quando Janaína a segurou pelo braço.

— Enlouqueceu?!

— Jana, meu corpo tá doendo...

— Hel, a gente veio pra cá pra você ficar livre disso. Lembra há quanto tempo voce tá... qual é o termo? Limpa! E eu estou tão orgulhosa de você! A gente começou a deixar a porta da sala aberta durante o dia enquanto eu estou acordada, você pode fumar seus cigarros no jardim, pintar seus quadros lá fora, confiança, lembra?

— Eu sei, Jana, eu sei, olha... Eu tô vomitando, não aguento isso. Não tô conseguindo, ok? Meu corpo tá fodido e eu tô com calafrios o tempo todo e...

— E não importa, Helena Vincent! Você não vai sair daqui, você precisa ser forte. Você é forte e sabe disso.

— "Não importa"? Foi isso que eu ouvi? — indagou Helena, olhando fixamente Janaína nos olhos enquanto seu braço continuava preso.

— Hel, para com isso. Você entendeu o que eu quis dizer.

— Eu acho que você que não entende...

— Helena... Vem, vamo deitar, ver alguma coisa na TV assim no meio da tarde... — Janaína tentou arrastar Helena pelo braço.

— Janaína, tira a mão de mim. — Respondeu Helena, inesperadamente, ríspida, fria e distante.

Janaína engoliu seco. Não disse mais palavra alguma, apenas concedeu o pedido de Helena. Aproximou-se da porta e girou a chave cuidadosamente, devagar, enquanto observava Helena por cima do ombro.

Helena acendeu um cigarro ao abrir a garrafa de vinho que a família de Janaína guardara por gerações. Uma das poucas coisas que Janaína carregava do passado. Helena sabia, mas não parecia pensar. Não parecia ser a Helena. Era o mesmo corpo, o mesmo cabelo despontado no ombro recém tingido de preto. Os pés sobre outra cadeira. Fumava enquanto bebia no gargalo mesmo o vinho.

Janaína tentou conter as lágrimas, raramente chorava mas ver Helena não sendo Helena era suficiente para fazer seu coração transbordar. Rapidamente, escondeu-se no banho e permitiu que as lágrimas caíssem. Implacáveis.
Chorou pelo que acabara de acontecer.
Chorou por não entender o motivo de ter mantido aquela garrafa por todos esses anos.
Chorou por lembrar constantemente de seus pais nas ultimas noites.
Chorou por não entender mais o que estava acontecendo.
Janaína chorou por talvez nunca ter conseguido entender a si mesma e nunca ter se permitido transbordar daquela forma. E já nem sabia mais o que lavava seu rosto: se a água do chuveiro ou as tantas lágrimas incontroláveis. Soluçava.
Chorou por Helena.
Helena.
Não podia perder tanto tempo no banheiro. Quase uma hora havia se passado. Saiu enrolada na toalha com o rosto inchado torcendo pra que Helena não perguntasse nada naquele momento... E ela não perguntaria.
Helena estava dormindo na cama de Janaína abraçada com o pato de pelúcia que havia ganhado de Janaína há tantos anos atrás.
Uma última lágrima de alívio correu pelo rosto de Janaína. "Vai ficar tudo bem" "vai ficar tudo bem" a moça dos cabelos cor de ouro repetia mentalmente de forma incessante enquanto apertava os olhos, quase que como uma oração.
"Minha filha, até o ouro passa pelo fogo pra ser refinado." Janaína lembrou da frase que sua avó costumava dizer. Essa fase lhe queimava o peito.

Talvez fosse só fogo refinando o ouro.