Schorodinger

domingo, 12 de abril de 2020

De repente eu estava vendo Helena limpando a cozinha e nada mais fazia sentido, olhei minhas mãos, meus dedos mexiam mas eles não pareciam meus, corri os olhos pelo braço até ver que eles estavam conectados ao meu corpo. Mas então...? Poderia ser sonho. Afinal a comida não teve gosto de nada. O som da rua parecia muito mais distante do que realmente era. Vou acordar. Me belisquei fechando os olhos, afinal se estiver dormindo vou ter que abrir os olhos.

Abri os olhos e tudo continuava igual. Devo estar em uma crise de despersonalização de novo. Foda-se. Tanto faz, ultimamente todo que eu queria era estar morta. Claro que não posso deixar transparecer isso pra Hell, mas... eu estou completamente esgotada. Sem a menor força pra continuar tudo isso aqui. 

Não. Não posso pensar nisso. Me levantei da mesa dizendo que iria tomar banho e ouvi um "de novo?", um fio de cabelo molhado tocou minha nuca. Então vou dar uma volta de carro. Não. Lembrei do pesadelo da noite passada. Era a mesma cena do acidente, só que quem dirigia era eu e no banco do passageiro estava Helena. No banco de trás uma voz de criança me chamou pelo nome. Na hora que virava o espelho para ver quem era eu via a mim mesma e, no movimento de tentar me virar inteira para ver quem era sentia meu pescoço estralar com tanta força que acho que foi ali que morri dentro do sonho.

Curioso pensar como uma merda de um sonho tinha estragado meu dia a tal ponto. O corpo tremia tão sutilmente que nem mesmo quem pegue minha mão sentiria. Eu estava me afogando em mim mesma, de novo. Raposa, jogue uma boia. Raposa? Não conseguia senti-la. Não... não... não me deixe aqui sozinha, não agora. Não... me tira daqui... anda... Não.

Abri os olhos. Estava no chão. Helena do meu lado, olhar preocupado. A raposa respirava aliviada. A cabeça latejando o corpo inteiro mandando espasmos como se falassem "dedos do pé, câmbio", "canela, câmbio". Tentei levantar e Hell me segurou.

- Calma, devagar... - Aos poucos ela me ajudou a sentar - Ta tudo bem? Você me assustou.

- O que... aconteceu?

- Eu tava dormindo - Só agora notei que ela estava com uma camiseta grande - Ouvi um barulho, não te vi na cama e vim ver o que estava acontecendo...

- E o que - A cabeça girou inteira, quase caí de volta, respirei fundo - Aconteceu?

- Não sou CSI... mas apostaria que tem relação com aquela garrafa vazia e lembranças ruins... mas vem cá.

Nada fazia sentido. Talvez fosse o que ela falava. Talvez ainda estivesse dormindo e daqui a pouco acordaria. Ao levantar senti o fio de sangue escorrer da perna. Que merda tinha acontecido aqui?

- Hell... eu...

- O que foi... - Ela viu minhas costas, ao que parece eu tinha caído em cima de outra garrafa igualmente vazia e que agora não tinha mais sua forma original - Puta merda Jana... vem cá, vou dar um jeito nisso.

De repente eu estava a caminho do banheiro e foi impossível não lembrar do dia que quebrei um copo na palma da mão. Foi um sentimento semelhante. Com cuidado sentia Helena tirar minha blusa e com a habilidade de quem já faz isso faz anos ir tirando caco por caco das minhas costas. O corpo pendeu para frente, não conseguia me sustentar em pé ou nem mesma de joelho. 

Cada pedaço de vidro que saía era mais uma confirmação de que eu não sentia absolutamente nada. Quis dizer para Helena me deixar ali e ir cuidar da vida dela. Talvez eu tenha dito pois notava nas palavras dela um tom de choro. Eu não entendia nada que ela falava, parecia outro idioma, às vezes ela parecia cantar. Me lembrei do dia que nos conhecemos naquela biblioteca. Acho que cada pensamento meu estava saindo pela boca pois a ouvia dizer para ficar calma. Sem perceber tudo foi escurecendo, escurecendo e eu apaguei.

Acordei em um sobressalto assustando tanto Helena quanto a raposa. O ar nos pulmões não vinha em quantidade, podia sentir o coração acelerado, as palavras voavam pela minha cabeça como se fossem pássaros enfurecidos. Não sentia nenhuma dor. A morena me perguntou o que foi, perguntei da noite passada. Nada de anormal. Ela deve estar querendo me privar das lembranças... passei a mão nas costas e nada. mas o que? Nada mais estava fazendo sentido. Caí de volta na cama. Tentar dormir pra ver se acordo em um mundo menos pior. Ótimo.

Entropia

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Não tem como dizer o que acontece. Pode ser um pico de stress, um ápice de riso, qualquer situação, quando você vê a sensação de estar sonhando está lá. Pode parecer confortável não ser atingido por nada, mas não é, é sufocante. Não vou dizer que é a pior sensação da vida porque já senti coisa pior. Mas é angustiante, você não sabe se vai conseguir parar, quando vai passar, se vai passar.

É uma defesa do cérebro antes de acontecer algo pior, penso que deveria durar pouco, acredito que pra maioria das pessoas dure segundos, seja imperceptível, mas pra mim acaba durando horas, dias, semanas. Arrisco dizer que já durou meses um tempo atrás. Arrisco porque afeta a memória e, quando penso nisso, tento ter lembranças antigas e tenho uma, com uns onze pra doze anos, estava em uma churrascaria e tenho a imagem de ter virado pra minha mãe e dito "tô com a impressão que estou sonhando", é só um flash, uma cena de, no máximo, cinco segundos.

Depois disso é um grande campo branco. Não lembro de mais nada. Minto, pra não dizer que não lembro de absolutamente nada eu tenho mais flashes de cinco segundos nos anos que se seguiram. Um no banheiro, um na escola... de resto não tenho nada. As coisas que alego ter passado ou é coisa que todo mundo passou, história que alguém disse que passei ou coisa que eu invento. Aprendi a inventar boas histórias sobre meu passado.

Se isso ficasse só no passado mais remoto maravilha, porém não é o que anda acontecendo. Todas as lembranças de anos recentes acabam se tornando algo branco, vazio. Ou, pra não perder completamente nada, ficam aqueles flashes. E o mais foda é que, de uns dois anos pra cá, começou a ficar mais intenso. Graças à internet descobri um possível nome pra isso: despersonalização.

Não gosto de usar muleta de doença, mas caso eu realmente tenha essa eu não sei o que fazer. Não sei como agir, não sei pra onde ir ou pra quem pedir ajuda. Houve uma época que eu conseguia sair das crises mais intensas provocando dor física. Hoje não funciona mais, é como se fosse uma pedra caindo numa lagoa: faz as ondas e logo volta tudo ao normal. Quase como se meu cérebro buscasse uma entropia. Entropia. Vou chamar isso aqui de entropia.

Nada é real. Ou é? Tem dias (como hoje) que eu vou acordar de um coma ou algo parecido lá nos onze anos. Só que acho que minha cabeça não é tão inventiva a ponto de criar tantos anos a frente... se bem que ela criou segundos de anos. Merda. Não sei mais o que fazer. E ninguém vai ter a resposta. Quando perguntarem o que é eu prefiro dizer que não é nada ao ter que explicar tudo isso... até porque ninguém vai entender mesmo. Então eu prefiro pegar, mentir tudo e pronto, ainda está funcionando.

Não. Não está. Sim. Eu estou em total conflito. E não é entre personalidades, é entre eu e eu. É diante de um espelho imaginário. E nesses momentos eu tenho a nítida impressão de que eu não existo e os versos de Pessoa (sempre ele e sempre esses versos!) me vem: Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo.

Já não sei mais sobre o que estou escrevendo. Eu devia estar trabalhando, mas zero ânimo de trabalhar. Amo meu emprego, mas nos últimos dias tudo tem sido um grande nada. E aí a urgência de fazer algo que marque, que seja realmente diferenciado fervilha. Mas eu não posso fazer e, quando vejo, o dia passou e não fiz nada. De novo. Talvez esse campo vazio de lembranças seja justamente por isso, por eu nunca ter feito nada. E Pessoa vem de novo.