Reencontro - parte II

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

TW: Esse texto não é indicado para pessoas sensíveis que sofrem com crises devido a traumas, pois o conteúdo pode servir como gatilho para novas crises intensas.
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A lua chamava a atenção naquela noite cheia de estrelas e luzes nas ruas. Estava fora daquele quarto. Finalmente, mais perto de casa do que nunca... sem saber exatamente se ainda tinha um lar, se seria recebida, mas tudo bem, ainda tinha alguém la. Sem caronas dessa vez. Sem identidades falsas, não precisava ser a Clara aquela noite. Apenas Helena. A mesma fodida Helena de sempre.
Tinha gente à minha volta, bares e música. Risadas, conversas e pela primeira vez em muito tempo, não temi nada. Respirei fundo.
Liberdade.
Senti liberdade. Eu, Helena, a filha das estrelas caminhando coberta por elas.

Sorri de canto. Entrei em um bar. Hora da festa.

Sentei em uma mesa perto da janela, eu não queria deixar de olhar a movimentação, a noite, não queria pensar em mais nada além daquele momento. Pensei em pedir uma dose de uísque, lembrei que estava há muito tempo bebendo coisas amargas. Pedi um vinho. E outro. E outro. E outro.
Percebi que um rapaz do outro lado do bar me olhava e sorria de um jeito tímido. Ruivo. Cabelo comprido. Há quanto tempo eu não me permitia? Retribui o sorriso. Ele veio até mim.

— Está esperando alguém? Posso sentar? Não quero atrapalhar...

— Tudo bem, pode ficar — respondi,um pouco sem jeito — tô sozinha.

Ele sorriu da forma mais covarde que eu já vi alguém sorrir.
Começamos uma longa conversa sobre música, ele também tocava piano, ouvia Björk, criava lagartas e comentou sobre algumas tatuagens. Seu nome era Lucas.

— Desculpa a falta de atenção, Lucas, meu nome é Helena, igual o da minha mãe.

— Você tem o nome da sua mãe? Ela deve gostar disso.

— Na verdade eu nunca vou saber. Ela morreu quando nasci. Meu pai colocou o nome em mim como forma de homenagem, senão eu teria algum nome gringo como meus irmãos. Meu pai é inglês.

Engoli seco quando me dei conta de que havia contado parte da minha história pra um estranho... ou pra alguém que não fosse a Janaína. Lucas perguntou se eu estava bem ao notar meu longo silêncio. Eu pedi dois shots de tequila. Precisávamos apagar essa pequena parte da noite.
Os dois shots logo se tornaram seis. Lucas puxou a minha mão com empolgaação e me levou até um canto um pouco escondido do bar, virou um pino de cocaína sobre a mesa e separou em finas e longas carreiras. Olhei, estagnada.

— Ei, Helena, tá tudo bem. Vamos nos divertir. Dançar como se o amanhã não existisse. A lua está linda lá fora. Você está quase com sono. Não precisa ter medo.

A forma como Lucas falava era firme e confiante. Não hesitei mais. Senti minhas narinas e minha gengiva ficando dormentes. Achei a sensação engraçada. Meu coração batia mais rápido. De repente, eu tinha super poderes. Não tinha medo de absolutamente nada.
Lucas e eu saímos de fininho do bar sem pagar a conta.
Corremos pela rua como duas crianças, rindo, atravessamos uma avenida, paramos perto de outros bares, um estacionamento e um pequeno beco. Gargalhamos. Ele deu um leve toque no meu ombro exclamando "HELENA NÃO ME PEGAAAAA!" E correu em direção ao beco.
Eu ri.

— Lucas, esqueci de perguntar a sua idade, mas presumo que não tenha mais de doze, acertei?

Ele não respondeu. Estava levando a sério a brincadeira, talvez. Comecei a procurar. Não havia luz no beco. Belo esconderijo.
Fui surpreendida por alguém me encostando na parede.

— Te peguei!

— Caralho, Lucas, que susto!

Ele acariciou meu rosto. Nos beijamos. Ele me beijava intensamente, juntava o corpo dele ao meu, cada vez mais. Suas mãos exploravam minha pele, ele descia os lábios pelo meu rosto, queixo, pescoço... Abri os olhos. Senti meu coração subindo pela garganta. Eu não estava mais confortável.

— Lucas... Ei... acho que não vai rolar.

Ele continuava, segurou meu corpo com mais força, colocou as mãos por debaixo da minha blusa. Tentei falar de novo.

— Lucas, para! EU NÃO QUERO, ME SOLTA!

Ele colocou a mão no bolso, foi até o meu ouvido e disse baixinho "Helena, querida, não corta o clima." Senti algo frio se aproximando do meu pescoço. Era o canivete que Lucas havia tirado do bolso.

Meus lábios ficaram mudos.
Meu corpo ficou estático.
Minhas blusa, rasgada.

"Hora da morte" pensei. É claro que o vislumbre de alegria plena não me cabia também. É claro que isso teria um preço alto. Que ilusão estúpida acreditar que eu sairia ilesa disso! A felicidade era para os bons e eu nunca, nem de longe fui boa ou coisa parecida. Nunca sequer vali a pena. Lucas rasgava minhas roupas e a lâmina fazia pequenos cortes em meu corpo enquanto eu pensava que se talvez eu não tivesse vindo ao mundo, minha mãe estaria viva, meu pai fosse um homem melhor, Lilian estaria com alguém que realmente a amaria sem se entupir de antidepressivos. Minha existência era um erro que deveria ser corrigido. Ou que toda essa desgraça fosse punição do Universo pelo meu impulso interno de sobreviver. Estúpida Helena. Maldita Helena.

O tempo parou.
Vi duas mulheres saindo de um bar longe indo na direção do estacionamento que era próximo ao beco. Não sei explicar, mas isso me destravou, ao menos parcialmente.

— Lucas... Me ouve. Isso vai ser melhor se você souber o que eu sei fazer... — tentei forjar um tom safado com o resto de coragem que ainda tinha em mim.

Ele me soltou aos poucos, fui até ele, até o pescoço dele. Explorei os pontos fracos. Não era tão difícil descobrir. Por dentro, eu estava quebrada, ele porém, estava entregue. Entregue o bastante pra deixar as mãos frouxas. Imbecil. Peguei o canivete rápido e quando ele esperava o "gran finalle", cravei o canivete em sua coxa e corri. Corri como nunca antes. Corri em direção àquele estacionamento. Corri enquanto as lágrimas mal me deixavam enxergar. Minha visão turva só me permitiu ver um carro de porta aberta com duas mulheres. Saltei pra dentro gritando:

— LIGUEM O CARRO, FUJAM, RÁPIDO, POR FAVOR, AQUI NÃO É SEGURO! Rápido... Por... favor...

Notei minha voz perdendo força.
Meu corpo também.

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Meu corpo balançava e meus joelhos ardiam. Eu ainda estava de olhos fechados, não podia estar em uma ambulância outra vez. Estaria deitada, mas não estava. Claramente eu estava sentava em algum carro, um cinto me prendia. Tive medo de abrir os olhos e notar a figura que estaria ao meu lado.
Havia tido um sonho estranho do qual me lembrava vagamente, mas acho que sonhei com...  Puta merda, que dor de cabeça! Respirei fundo. Senti um perfume familiar. Muito familiar. Respirei fundo novamente tentando esticar o corpo levemente quando ouvi a voz mais suave que eu poderia ouvir naquele momento:

— Helena?

Não. Impossível.

— Helena? Ei, não consegue mais falar? Puta merda, devia ter te levado em algum hospital.

Virei o rosto pro lado da janela. Não podia acreditar.

— Jana, você tem isqueiro aí?

— VAI SE FODER, HELENA, VOCÊ SOME POR MAIS DE UM ANO, DESMAIA TODA MACHUCADA NO MEU CARRO DO NADA E A PRIMEIRA COISA QUE ME PEDE É UM ISQUEIRO?

— Também senti sua falta, Jana. — Disse enquanto explorava o porta-luvas. — Eight? Sério? Desde quando você fuma? Pelo menos achei um isqueiro. — Debochei ao acender um Carlton.

— Eu não fumo, você sabe. Isso é da Lob...Helena, você não deveria fumar no meu carro. Para de mudar de assunto, Hel, o que aconteceu? Porra, você sumiu sem sequer dar certeza se voltaria e eu não desacreditei, não deixei de esperar por isso um único dia. Você estava assustada, machucada e ainda tá suja de sangue. Dá pra falar?

— Jana... Eu... Eu não sei, eu acho que... — as palavras não saíam, não importa o quanto eu tentasse. Tudo estava ali. As marcas, as dores. Lembranças correndo tão rápido a ponto de me deixar tonta, mas algo maior estourava no peito. Algo que transbordava. Um longo choro veio. Choro seguido de soluços. Incontrolável em meio a dezenas de pedidos de desculpa.

— Ei, minha pequena, tudo bem. Tudo bem. — Janaina segurou minha mão, sua mão esquerda permanecia no volante — Eu te encontrei. Você me encontrou. Vou te proteger. Estamos juntas agora. Vamos ter tempo. Não vou mais te soltar. Nunca mais. Eu nunca mais vou soltar a sua mão. — Jana deixou cair alguma lagrimas enquanto me olhava daquela forma tão terna, sorrindo. — Eu te amo, Helena Vincent.

Sorri entre as lagrimas e apertei com força a mão de Janaína.
Estávamos na estrada e ainda longe bem de casa, mas eu sabia: já tinha encontrado meu lar.

Loba

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Mandou um beijo com a palma da mão, agradeceu pela compania até agora e deu tchau fechando a câmera. Suspirou aliviada deixando o corpo cair na cama. Tirou a peruca rosa a jogando para o lado. De olhos abertos Érika viu o teto do quarto sujo. Qualquer dia tinha de limpar, se bem que esse cômodo aqui só precisava estar arrumado o que ela queria mostrar nas lentes - no caso a cama, uma parede com funkos que ganhou de presente e um grande quadro de uma pinup que achou em uma loja por um preço ridículo.


Várias vezes pensou em parar. Aquilo ali não era vida. O pior é que ela gostava, fora que era um puta complemento de renda. Se ficasse apenas como garçonete nos finais de semana não poderia manter o padrão de vida que seus filhos tinham. Terça, quarta e quinta tinha show marcado. Enquanto alcançou o celular chegou na mesma conclusão que sempre chegava: pelo menos não era prostituição na rua, ela apenas se mostrava na câmera e sempre com quem pudesse pagar mais. Em um mês bom tirava quase oitocentos dólares limpos. A maior parte ia para a casa e uma parte guarva para alguma aventura.


Claro que ela tinha um sonho secreto. Ainda se lembrava do dia que uma russa lhe pagou cinquenta dólares para ficarem conversando, bebendo e se mostrando na câmera. Pensar nisso lhe deixou molhada. Balançou a cabeça negativamente. Puxou do canto da cama a calcinha que havia jogado longe, o sutiã que estava no mesmo canto também foi vestido junto do robe de uma marca vagabunda que havia comprado na internet mas era bonito. Quase confortável.


Do armário atrás do notebook pegou a garrafa de tequila. A mesma que havia comprado para um show onde, a cada dez dólares, viraria uma dose. Bebeu quatro doses naquele dia, dormiu com a câmera aberta. Ainda tinham dois terços de garrafa. Por trabalhar no horário da Rússia e da Ásia sempre trocava o dia pela noite e agora não tinha um pingo de sono. Olhou o relógio. Duas e cinquenta e três. Pensou em Amanda, sua filha com Wellingtown, semana que vem ela faria seis anos e passaria a ir para a escola. Tobias ainda tinha seus dois anos. E pensar que oito anos atrás teve uma oportunidade de ir embora do país.


Abriu a garrafa arrancando a tampa com a boca. Pensou que plot twist azedo se tornou sua vida. Bebeu um farto gole para abafar esse pensamento. Resolveu colocar seu fetiche em dia. No seu idioma. Entrou na sala de bate-papo. Agradecia aos céus por elas ainda existirem. Sempre ficava na câmera contra outra câmera. Perdeu as contas de quantas em vez de uma mulher viu outra coisa. Lamentável.

Foi quando viu um nick diferente. Desde sempre se dizia a Loba Morena. E agora na sua tela surgia a Raposa Solitária. Será que haviam parentesco entre lobos e raposas? Não sabia e não estava com a menor vontade de pesquisar. Bebeu um gole curto dando seu já clássico olá. Quatro minutos depois a Raposa respondeu.

Mais um gole. Um trovão rompeu o céu madruguento anunciando uma tempestade. Comentou com a Raposa que disse ter ouvido o mesmo. Não deviam morar longe. Será que hoje teria coragem de ir até o fim? Bebeu um gole longo. A metade da garrafa já ficou para trás. Hoje ia ver até onde era capaz de ir.

Falaram sobre inúmeros assuntos até chegar ao ponto da curiosidade sobre quem era por trás. Dessa vez não estava pronta caso fosse um homem. Hesitou um instante. Não haviam homens tão interessantes acordados esse horário.

Carregando. Érika viu o próprio corpo refletido na imagem da própria câmera. Um segundo mais e apareceu o corpo da Raposa. Os fios loiros cobriam uma camisola simples de tom rosa-chá. Mais algumas frases e logo decidiram mostrar rosto. Érika tinha um rosto ovalado, olhos pequenos, boca estreita e nariz fino, tudo herdado de seu avô, que veio do Japão. A Raposa propôs um brinde. O brinde aceito ambas beberam fartos goles. A Loba tequila, a Raposa vodka.

Logo o calor - uma desculpa - as obrigou a despirem-se. Érika sentiu o corpo tremer. A respiração subiu, o sorriso fino ao ver o corpo extremamente normal da Raposa lhe trouxe planos. Agora era a hora de realizar aquele velho plano. Trocaram telefones.

Assim a Loba Morena voltou a ser Érika e, agora, a Raposa Solitária passou a se chamar Janaína. Uma ligação se fez para confirmar as identidades. Obviamente todo aquele sangue no álcool das duas trouxe uma proposta que ninguém sabe de onde surgiu. Mas terminou com Érika retorcendo os lençóis da cama bagunçando tudo. Os gemidos baixos para não acordar ninguém dos quartos vizinhos era abafado pelo travesseiro.

Silêncio. Depois de quatro minutos as vozes voltaram à chamada telefônica. Érika tomou a iniciativa, tinha que colocar todo aquele desejo para fora, aproveitar a oportunidade. Propôs um encontro para já, o dia seguinte. Final da tarde. Janaína aceitou propondo local público. Um shopping para depois decidirem para onde iriam.

A ligação acabou com Érika com um sorriso imenso. Já devia ter machucado o lábio de tanto que o mordiscou. Se levantou, arrumou o lençol, desligou o notebook e caiu na cama. Acordou no meio da tarde com Wellington a chamando. Ele sabia que ela ganhava dinheiro com a internet. Ela dizia que de madrugada era mais propício para trabalhar porque alguns dos clientes que prestava consultoria eram asiáticos. Sua meia verdade fazia sentido. Meia verdade. Meia mentira.

Limpou o quarto, cuidou das crianças. Pensou novamente em largar tudo. Mas a grana era boa demais pra abrir mão assim. Pegou o telefone. Centenas de mensagens que foram sumariamente ignoradas. Tudo aquilo não podia ter sido fogo-de-palha, enviou uma mensagem para Janaína confirmando o encontro.

Se sentia errada mentindo. Mas era preciso, não haviam empregos para mãe de duas crianças. Todo mundo achava lindo um par de filhos mas ninguém sabia o que ela e Wellington sofriam para cuidar. Quando já se dava por resignada, seu encontro havia ido por água abaixo a tela do pequeno aparelho com uma rachadura na tela na lateral superior esquerda acendeu. Sorriu de canto. Aos viventes da casa disse que tinha uma reunião na sede da empresa que ficava do outro lado da cidade e, por isso, frente às últimas luzes do dia, sairia rumo ao outro lado da cidade. Sozinha no quarto vestiu uma calça jeans normal, uma blusa preta do Nirvana, nos pés um all star baixo. Na bolsa levava, além do celular, chaves de casa, algum dinheiro e spray de pimenta uma muda de roupa íntima mais sensual, infelizmente conforto e sensualidade não passavam pelos mesmos departamentos nas fábricas de lingerie. Deu um beijo em todos e seguiu rumo a porta.

Já no portão respondeu que estava saindo, mesmo que faltasse mais de uma hora para a hora combinada. Aproveitaria para passar pela loja e ver qual era o preço daquele telefone que Amanda queria e depois shopping. Se bem que ia propor um bar de rock não muito longe dali.

Dia de realizar desejos.

Reencontro

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

TW: transtorno de estresse pós traumático. A leitura desse conto não é recomendada caso você tenha vivido um trauma recente. A escolha entretanto fica a seu caráter. Os escritores não se responsabilizam pelo conteúdo uma vez que há aviso prévio. Em caso de TEPT, procure ajuda!

Trocava de canal: futebol. Foda-se. Meu pai conseguiu desenvolver em mim verdadeira repulsa por canais de esportes e esses comentaristas babacas. Além do público que não é lá muito imprevisível: aqueles caras que tem todo um estoque de cerveja na geladeira e se limita a coçar as bolas no sofá da sala enquanto a esposa revira páginas de pesquisa na internet com a busca "como agradar o marido". Tsc. Deprimente. Lembrava tanto meu pai e Lilian. Ele era um bom marido até certo ponto, mas quando decidi ir embora, por mais que Lilian não conseguisse disfarçar seu repúdio por mim, era visível o quão depressiva ela estava. As gavetas tinham caixas e caixas e prozac, exodus, sertralina... o que mais ela tentaria pra levantar o ânimo? Cheguei a ouvir sem querer ela chorar no telefone dizendo que se sentia um lixo. Nem auto-estima a mulher tinha mais. Será os filhos? Peter já tinha quase dez anos... mas Mik? Sequer tinha completado um ano quando parti. O corpo de Lilian mudou depois do nascimento do Mik, mas... Não. Meu pai ainda era um inglês. Não se deixaria levar por tamanha futilidade. Ou sim? Não seria improvável se tratando de um Stewart. Merda. Minha cabeça outra vez estava a mil. Outra vez mudei de canal. E de novo. E de novo. Nem olhei pra tela, agora minha mente estava presa em Mik, meu caçula. Lembrei da última vez em que fiquei naquela casa e tentei ver como um lar. Estava tocando piano, Mikael puxava a barra da minha calça tentando escalar, ele gostava de pressionar as teclas, espacialmente as pretas. Peter era um garoto magrelo, extremamente branco como eu, tinha até umas olheiras. Cabelos lisos negros, ou quase. Era calado. Lia Edgar A. Poe e Goethe, como eu. Ao contrário, não comentava. Peter parecia aquelas crianças que haviam sofrido um trauma e ficaram mentalmente sequeladas. Porra, eu não devia ter rido disso. Ainda tem vinho no frigobar? Em todo esse tempo eu não pensei nem por um minuto neles. Exceto no olhar de Mik. O olhar dele é diferente de tudo. Mik não é como meu pai, nem como Lilian ou Peter. Não conheci minha mãe para comparar. Já Mik...  tem os cabelos loiros em um tom que quase lembram fogo e seus olhos acompanham a cor do cabelo. Seu olhar queima tudo o que ele olha. Atravessa tudo. É como se ele visse através da pele, através do tempo e das circunstâncias. Tão pequeno e tão conectado a mim.
A TV estava de fato entediante tanto como aquele lugar — que convenhamos, em muito tempo era o mais limpo, tranquilo, seguro e decente que já estivera. Ao menos tinha certeza de já não estar mais tão longe de tudo.
Definitivamente, é hora de descer desse quarto e beber, sair de mim. Minha cabeça permanecia sobrecarregada.
Levantei da cama, calcei os velhos coturnos que não me acompanhavam há pouco tempo e vesti a jaqueta jeans que fugiu comigo e permaneceu comigo e possui tantos rasgos e marcas quanto eu. Marcas. Meu olhar ficou perdido por alguns segundos, tenho certeza disso, minha mente voou. Senti meu corpo sendo arremessado ao chão. Senti peso sobre mim. Senti cheiro de mato, de suor, de álcool, meu corpo doeu novamente. Estremeci. Apertei os olhos com força, deixei uma lágrima cair. Lembrei daquela mão áspera em direção ao meu rosto... meu celular sinalizou uma nova mensagem. Abri os olhos, respirei fundo. Malditas crises estranhas, outra vez! Olhei para o celular enquanto minhas mãos ainda estavam trêmulas. Era Janaina. Acendi um cigarro. "Helena Vicent Stewart, onde caralhos está você?" Eu vou ligar pra ela. Eu juro. Mas antes eu vou esquecer tudo o que vivi. Antes deixarei Clara perdida dentro de alguma garrafa ou algum cobertor. Antes reencontrarei Helena.

Maestros do fim do mundo

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Ontem quando acordei de um cochilo, esperei alguns minutos pra ver onde estava, se era dia ou noite, se eu tinha acordado de fato ou se era apenas um sonho lúcido. Quando notei que estava aqui, viva, lamentei. Não queria ter lamentado, não queria falar sobre essa parte de mim que carrego amassada no bolso do casaco tentando deixar impercetível, não queria demonstrar ingratidão, não queria ter sentido aquilo, mas lamentei. "Outro dia", pensei.
Ontem me olhei no espelho e enquanto permanecia em silencio, mentalmente amaldiçoava minha existência. Desprezei tudo o que vi de mim com palavras cruéis, as quais jamais teria coragem de dizer a alguém. Me odiei, outra vez.

Comecei algo novo, me empolguei e quando me dei conta, já não fazia diferença.
Nada faz diferença. No fim eu sou sempre a mesma.
Ainda não dormi. Quase oito horas da manhã e eu ainda não dormi.

...
Só que eu sei que vou conquistar o mundo inteiro antes de sair da cama
Mas ao levantar, ele ainda será opaco.
Ao despertar, o mundo ainda será alheio.
Alheio, como tudo.
Alheio como eu.
Como as vísceras da minha alma
Todo dia é como ontem.
Ciclo que será quebrado com um inédito espetáculo.
As luzes se apagam.
A platéia cochila dispersa
E quando menos esperam
A décima quarta sinfonia de Beethoven invade o salão
Notas oscilantes
Respiração ofegante
Acordes quebrados
cacos de vidro voam e cortam
Rostos
Braços
Artérias. Artérias!
Todos fazem cara de horror ao ver tal cena
Que bela encenação! Há sangue.
Tão real
Há sangue nas mãos de cada um deles
Uns gritam, outros desmaiam de pavor
Outros choram baixo como se quisessem esconder o choro
O público está em êxtase.
Uma combinação simultânea de seis notas graves é sustentada por uma fermata.
Todos estão estáticos.
Os sons mudam
Luzes e som de sirene.
Que tumulto!
Que show.
Uma tampa de madeira se fecha sobre um corpo frio
As flores são lançadas em meio a lágrimas.
Quanta ironia.
Silêncio
A música acabou.
A terra cobre as flores, cobre a tampa que cobre um corpo que cobria tudo que ousava sentir
Corpo agora vazio.
As cortinas fecham.
Aplaudam.
APLAUDAM!
Mais alto. Não consigo ouvir.
Estou aqui, do outro lado
E sabe como é...
Aqui embaixo é bem difícil escutar qualquer coisa.

Nota rápida (this is war)

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Há bombas explodindo lá fora e eu posso ver
Pelas janelas da minha casa
Pelas janelas da minha alma também
Ando por um campo minado
O som ensurdece aos outros
Meu corpo está sendo constantemente mutilado pelas explosões
Alguns dos meus membros estão dilacerados
Não sinto.
Estou dormente demais pra sentir
Porque aqui dentro — de casa e dos meus tímpanos — ecoa alto o blues que coloquei pra tocar quando abri minha última garrafa de vinho
Tudo ainda está entorpecido
Minha velha carcaça
Meu encéfalo também
E que bênção é a ignorância!

Santificados sejam os tolos, pois não sabem a dádiva que desfrutam por exercer inocentes sua tolice, livres da culpa, isentos de saber as consequências de seus atos
Santos sejam
Bem aventurados aqueles que vivem no piloto automático
Cuja existência é livre e sem necessidade de propósito
Abençoados sejam aqueles que rastejam como vermes sobre a terra
Porque medíocres por medíocres, esses não conhecem a amargura de questionar a própria razão.

O mundo ainda explode
As mulheres gritam enquanto suas crias antes barulhentas, agora silenciam eternamente em seus braços
As ruas são rubís preciosos de jovens almas
Rubís
Olhe suas mãos, suas roupas penduradas no banheiro
Até mesmo seus travesseiros
Note, todos nós temos mais sangue fora das veias a vista do que deveríamos

Respira fundo.
Sente o frio.
A morte é fria
Vazia
Solitária
Every creature on earth dies alone
Você deveria ter visto esse filme
Agora nem dá tempo
Aquela casa em chamas afinal...
Não é a tua?

Enigmas

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Sempre gostei de falar por enigmas, talvez a melhor forma de eu forçar meu lado escritor a se expressar e, assim, eu tirar algo que há em mim, seja um sentimento, uma sensação... Mas às vezes, como agora, as palavras me faltam e eu apelo pra um velho truquei meu que é buscar palavras em músicas. Você sabe disso melhor do que eu.

Sei que provavelmente você não verá a carta, talvez a chuva molhe aquela caixa de correio velha que eu já disse que você precisava trocar. Com sorte talvez ainda consiga ler, afinal estou escrevendo a lápis, agora que me dei conta disso. Sempre achei lápis mais orgânico que caneta. 

Minha letra deve estar horrível, mas nesse momento em que o céu ficou cinza e a água do meu chimarrão acabou e terminei todos os meus trabalhos eu parei, suspirei e um sentimento me tomou, precisei falar, colocá-lo para fora, por isso a carta em que eu não conseguia me expressar e preferia me expressar em forma de música que, para variar, demorei mais do que imaginei e agora estou devaniando... 

Por que quando as cartas são para você elas tem essa tendência de me tirar o rumo, me fazer olhar para a parede que um dia foi branca e hoje tem um tom amarelado? Vou terminar por aqui com a frase da música que tinha prometido várias linhas atrás:

"Sem mais eu fico onde estou, prefiro continuar distante..." (Skank - Resposta)

Acorda

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Ei, moço! Levanta daí! Vai lá, corre no mercadinho, compra uns picolés pra vocês dois. Pega umas flores no caminho, diferentes mesmo, não precisa combinar muito. Você sabe que ela gosta de variedades. Você sabe que ela gosta de uma infinidade de cores e formas. Leva pra ela.

Ei, moço! Arranca uma folha daquela caderneta que vive jogada na tua sala e escreve um bilhetinho pra ela. Ela gosta de cartas, você sabe disso também, mas não tem problema se não souber o que escrever. Desenha só um coração com as iniciais de vocês. Esconde no estojo dela. No porta-óculos, talvez. Mas faz. Ela precisa aprender a sorrir de novo.

Ei, moço, não deixa ela dormir até tão tarde. Não deixa ela passar tanto tempo sozinha. Enche ela de beijinhos ainda que ela pareça distante, irritada e inerte. Acredita em mim, no fundo ela só está perdida. Empurra ela pra debaixo do chuveiro. Fica lá com ela. Ajuda ela a se arrumar. Diz que ela tá linda. Puxa ela pra fora de casa, pra ver o sol, tomar um ar, pra ver que a vida é mais do que o quarto pequeno e o apunhalado de remédios nos quais ela tenta desesperadamente esconder a dor. Leva ela pro sol. Leva, com todo amor e paciência que há em você, sabemos que ela precisa e que ela não vai sozinha.

Ei, moço! Não briga assim com ela. Não diz que precisa fazer coisas mais importantes. Não trate como se fosse só uma dor de cabeça, não é. Você e eu sabemos que não é. Não pensa primeiro no amanhã. Olha pro seu lado, agora. Pra ela. Não dá as costas desse jeito, moço. Não faz ela se ver como um peso, não deixa ela acreditar que não merece ser amada. Olha pros olhos dela. Repara que a voz dela mal sai. Repara em quantas oitavas cada palavra que ela diz cai ao longo das frases. Não deixa ela sozinha, moço. Ela precisa do seu colo agora, ela precisa que o seu "pra sempre" seja validado agora.

Ei, moço, desperta. Desperta. Rápido, não temos tempo a perder. Nosso inimigo não cochila. A angústia que esmaga a garganta dela ainda está lá quando nós estamos fazendo outras coisas. Segura a mão dela, forte, não a deixe afundar. Acho que ela não consegue ver, mas você costumava dizer que as pessoas precisam dela. Salve-a.

Ei, moço, corre pra aquele banheiro. Tira aqueles comprimidos da boca dela. Vai. Ela tá no limite. Corre. Você não viu, não foi? Ela disse, ela contou pros amigos, ela escreveu cartas de adeus. Ela pediu ajuda. Ela disse que não dava conta. Ela disse, moço. Mais rápido. Ela tá sem pulso, a pele dela tá ficando fria. Não deixa! Você sempre foi o herói dela. Você sempre cuidou dos machucados dela. Vai lá, cuida daquele coração dilacerado.

Ei, moço! Abre esses teus olhos, abre de uma vez. Você passa tempo demais com os olhos fechados. Abre porque ela sente falta da cor deles. Do brilho deles. E ela sente tanta falta que isso a faz chorar. Ela sente tanta falta dos teus olhos que já pensa em fechar os próprios olhos...
e nunca mais abrir.

Pássaro azul

domingo, 9 de setembro de 2018

Aonde você está agora?
Só deus sabe.
"Deus". Se é que existe algum deus.
Nesse momento, pra ser sincera, chego a acreditar que não.
Porque incessantemente eu grito por um deus, por respostas, por perdão, por um sinal, por você, por qualquer coisa que não seja o vazio
E tudo o que me cerca é o vazio
É a tortura do silêncio
Da ausência de respostas
Da ausência de você.
Ainda assim, o mais profundo da minha alma insiste em continuar baixinho fazendo várias preces, com um resquício estúpido de fé quase invisível.

Eu sei que é tarde, em todos os sentidos
E eu sei que poderíamos estar comemorando nossas conquistas futuras
Mas sou torta, quebrada, confusa, errada, incompleta e triste.
Sim, triste.
Eu faço piada com tanta coisa
Minha risada é exagerada
Meu peito porém, exala angústia
Meus gritos de desconforto com o não-saber-quem-sou são abafados com risos. Com teorias aleatórias e insanas. Com uma sede desmedida de carinho.

É que vez por outra
o meu pássaro azul sai de dentro do peito e me fode pra caralho
O meu pássaro azul destrói os meus planos, as minhas vontades, os meus amores
e embora pareça pequeno,
devora cada fatia imensa da minha vida.
Eu tento, eu juro que tento, mas nem sempre as lagrimas me obedecem e se mantêm pro lado de dentro.
Eu tento, mas nem sempre as emoções se aquietam no peito
as vezes elas tomam todo o meu corpo, agem por mim e depois me deixam jogada desejando acabar com a carcaça do que sou
E cá estou

Como nasci
Como provavelmente morrerei
E como acredito que seja a minha condição mais adequada.

Eu não sei amar
Eu nunca soube
Nada, ninguém
Eu dou até a ultima gota de mim
Eu deposito mais do que deveria, eu espero a mesma intensidade.
E que pretensão a minha!
Cada um sente como pode.
Mas é que eu não sei amar, entende?
Eu vou gritar e te mandar embora e chorar se você for, e te quebrar se você voltar e tentar morrer se você for de novo
Porque eu nunca quero de fato que você vá
Eu não quero que ninguém vá
Você sabe, só você sabe
Que eu vou embora antes do abandono por jurar que isso vai tornar tudo mais suportável
E mais uma vez, estou errada
Porque eu te mandei embora
E não há nada que eu queira mais agora além de que subitamente meu coração pare de bater.

Ps: eu sei que machuquei você, quando tudo que eu queria machucar a mim. E talvez tenha sido a única forma real de me punir. Te ver sangrar doeu mais do que se eu tivesse rasgado todo o meu corpo.
"Somos um", dizíamos. Estamos quebrados, sangrando e perdidos.

E apesar de tudo, estou só
No meu próprio castigo. No limbo. Na tortura do silencio inquietante.
Se ainda puder sentir a minha existência, vem. Rápido
Não temos muito tempo.

Outra maldita madrugada igual a todas

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

isso dói
dói porque você não é lá muito bom em cumprir suas promessas, mas é bom em faze-las
e eu sou boa em acreditar.
dói porque tenho fugido com mil argumentos diferentes
porque tenho vivido do lado de fora
tenho visto do lado de fora
e o pouco que me permito entrar em mim...
dói
não te ver deixar tudo queimar na mesma proporção e ver seu grau de intensidade ser tão pequeno diante do meu
dói
te querer, te olhar, te imaginar e te ver de costas ou me olhar por cima do ombro apenas quando chamo seu nome
dói
a incerteza dói
não saber exatamente o que nos tornamos e o momento em que ocorreu me deixa perdida
dói porque seus braços ainda estão ao redor do meu corpo, mas seus olhos estão fechados, sua respiração parece densa, me dá agonia. seu sono é profundo
seus braços estão em mim, mas não me envolvem com paixão. estão soltos
eu estou solta

e só

m i s e r a v e l m e n t e  s ó.

mas você sabe o que eu faço, não sabe?
o roteiro é o mesmo todo dia.
eu vou deixar as lágrimas caírem por uns quinze minutos
daí vou usar um descongestionante nasal, colocar meus fones de ouvido e partir
vou me permitir voar, nua
despida da minha sobriedade
vou me permitir ser vista assim, vou rir como se não me importasse pelo resto a noite,
e vou rir alto! vou rir enquanto as musicas que me lembram a gente toca nos fones e me inundam o peito, até que entre um riso e outro, algumas outras lágrimas voltem.
depois do voo longo e insano, voltarei parcialmente a mim
parcialmente
nunca mais fui um todo
diariamente me torno fragmentos da minha essência
mesmo assim, em partes, voltarei.
te darei um sorriso, te receberei com um beijo e direi que estou bem
direi que estou feliz
a você
a todos
porque eu sei lá que droga é felicidade
quem sabe, afinal?
quem vai contestar o que eu disser?
nem eu mesma me atrevo.
no fim tanto faz, foda-se
acho mesmo que amo você.

Festa

segunda-feira, 30 de abril de 2018

- Acorda mais um dia, isso, vai, aguenta, viva, você sobreviveu. Mais um dia e outro e outro e mais um e quando viu já foi uma semana inteira, e outra semana e mais uma e passou um mês, você sobreviveu de novo. Cabe um parabéns aqui?

- Não sei, sobreviver é meio que um dever de todo mundo, então acho que não. Não?

- Não, se fosse sobreviver e se sobressair, aí sim mereceria uma parabenização, assim, só sobreviver sem mover muito mais coisas do que qualquer um moveria não seja passível de comemorar.

- Entendi. E quando se sobrevive em meio a inquietações e nuvens negras que soterram a existência e tiram toda a vontade de sobressair ou até mesmo de colocar aqueles velhos projetos em ação, quando se faz, ainda que o básico, por não conseguir sair desse vórtice, e quanto sobreviver, tendo uma voz doce que todo dia diz "pule" ou que, todo dia de manhã diz "pra que fazer tudo isso? Você vai aabar fracassando, frustrando as pessoas de novo e de novo e de novo, esse é seu destino", quando reagir aos estímulos é o máximo que se consegue fazer nos dias que passam todos iguais?

- Bem... aí acho que cabe alguma felicitação, afinal não se está deixando ser totalmente tragado pelas inquietações, reagir a estímulos faz com que as inquietações se calem, que essa voz cesse seu discurso.

- Elas sempre estão ali, naqueles dois segundos entre dar um enter e começar a próxima linha de texto, enquanto um software carrega, enquanto vai ao banheiro, na hora do almoço a voz se torna mais intensa, então se afoga em comida para ver se ela se cala, na hora do jantar a comida não é tão farta então se afoga em bebibda e só assim consegue sobreviver a mais um dia.

- Compreendo... então, se é assim, vamos celebrar.

- Com comida e bebida?

- Sim, comer e bebes, uma celebração completa, passe naquela loja e compre uns balões, encha-os e coloque alguns na parede, vai dar um ar renovado para a velha decoração, vamos comemorar todos os dias antes de dormir.

- Assim a comemoração vai parecer algo automatico, uma rotina...

- Então só me resta dizer uma coisa...

- O que?

- Pule...

Tentar

terça-feira, 20 de março de 2018

Eu queria ter conseguido cuidar de você. Eu queria ter conseguido cuidar de mim. Queria ter evitado a primeira briga. Queria não viver me perguntando se errei em começar esse relacionamento, se meti os pés pelas mãos, se realmente estava destinada a ficar com você ou se burlei o destino. Se talvez eu só não estivesse sozinha demais, sem propósitos e doida pra te proteger, pra tirar a tristeza de você.

Não sei nem se devo usar o termo "dor" pra isso. É uma sensação de peito em fogo, de mundo girando rápido, boca seca e coração prestes a sair do peito, palpitando como se o tudo estivesse explodindo em câmera lenta. Dia após dia o "tentar" me consome. A angústia de não saber o que fazer e quando saber, simplesmente não conseguir ou não poder, ou ser tarde a ponto de você já não se importar. A frequencia com a qual isso acontece é assustadora. A sensação de ser seu maior peso, seu maior erro, seu maior arrependimento é arrebatadora.

 Sobreviver é desgastante quando a esperança sequer existe. Eu descreveria a esperança em nós como uma vela de aniversário daquelas que assopram, ela apaga e daí volta a começar a acender, entretanto antes que consiga acender de verdade, assopram outra vez. E se assoprar não for o suficiente pra apagar a pequena formação de chama, alguém rindo apaga com os próprios dedos, se gabando por não ter medo do fogo.
 Há dias em que parece que o amor é real e mais forte que tudo. E há dias em que questionamos a existência qualquer sentimento além da mágoa e da ira. Eu consigo me sentir rasgar ao meio toda vez que preciso escolher entre o que é "menos pior" ou o que "machuca menos", porque na prática qualquer coisa que fizermos, vai machucar.


 Quebrados, não importa o quanto, nós continuamos. Sim, nós prosseguimos porque lá no fundo nenhum de nós quer realmente soltar a mão um do outro. Lá no fundo, por baixo de todas as tristezas, ainda queremos isso. Ou ao menos acreditamos que queremos um ao outro. Nós realmente queremos? Quem de nós tem força suficiente pra desistir? E quem de nós dois tem força suficiente pra tentar de novo ou recomeçar? Estamos estagnados. Estacionados no nosso fracasso. Eu sei, é duro, é pesado, mas entramos no cômodo da nossa desgraça amorosa, procuramos o sofá menos desconfortável e nos jogamos nele. Estamos na nossa zona de sofrimento, afundando cada vez mais apenas apoiados em um sofá velho e gasto. Com os olhos fechados por medo de ver figuras se projetando na escuridão das nossas mentes. Apenas afundando por temer o que vem depois do fim. Ou do recomeço. Estamos em uma espécie de purgatório, sem prazo ou previsão de saída.

 Mas eu continuo aqui, como uma pequena vela que tenta acender, até o dia em que eu me torne apenas fumaça e desapareça no ar. No fim, talvez ainda nos amemos. Ou talvez nunca tenhamos descoberto que diabos que o amor é. Somos como duas crianças perdidas e cansadas no fim do dia, exaustas de procurar o lar, apenas buscando um lugarzinho qualquer pra apoiar a cabeça e receber um cafuné. Um "vai passar". Uma resposta. Um caminho. Os olhos pesam por tanto chorar. Suspiramos. Voltamos a agir como se nada tivesse acontecido.... afinal, aconteceu?