Loba

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Mandou um beijo com a palma da mão, agradeceu pela compania até agora e deu tchau fechando a câmera. Suspirou aliviada deixando o corpo cair na cama. Tirou a peruca rosa a jogando para o lado. De olhos abertos Érika viu o teto do quarto sujo. Qualquer dia tinha de limpar, se bem que esse cômodo aqui só precisava estar arrumado o que ela queria mostrar nas lentes - no caso a cama, uma parede com funkos que ganhou de presente e um grande quadro de uma pinup que achou em uma loja por um preço ridículo.


Várias vezes pensou em parar. Aquilo ali não era vida. O pior é que ela gostava, fora que era um puta complemento de renda. Se ficasse apenas como garçonete nos finais de semana não poderia manter o padrão de vida que seus filhos tinham. Terça, quarta e quinta tinha show marcado. Enquanto alcançou o celular chegou na mesma conclusão que sempre chegava: pelo menos não era prostituição na rua, ela apenas se mostrava na câmera e sempre com quem pudesse pagar mais. Em um mês bom tirava quase oitocentos dólares limpos. A maior parte ia para a casa e uma parte guarva para alguma aventura.


Claro que ela tinha um sonho secreto. Ainda se lembrava do dia que uma russa lhe pagou cinquenta dólares para ficarem conversando, bebendo e se mostrando na câmera. Pensar nisso lhe deixou molhada. Balançou a cabeça negativamente. Puxou do canto da cama a calcinha que havia jogado longe, o sutiã que estava no mesmo canto também foi vestido junto do robe de uma marca vagabunda que havia comprado na internet mas era bonito. Quase confortável.


Do armário atrás do notebook pegou a garrafa de tequila. A mesma que havia comprado para um show onde, a cada dez dólares, viraria uma dose. Bebeu quatro doses naquele dia, dormiu com a câmera aberta. Ainda tinham dois terços de garrafa. Por trabalhar no horário da Rússia e da Ásia sempre trocava o dia pela noite e agora não tinha um pingo de sono. Olhou o relógio. Duas e cinquenta e três. Pensou em Amanda, sua filha com Wellingtown, semana que vem ela faria seis anos e passaria a ir para a escola. Tobias ainda tinha seus dois anos. E pensar que oito anos atrás teve uma oportunidade de ir embora do país.


Abriu a garrafa arrancando a tampa com a boca. Pensou que plot twist azedo se tornou sua vida. Bebeu um farto gole para abafar esse pensamento. Resolveu colocar seu fetiche em dia. No seu idioma. Entrou na sala de bate-papo. Agradecia aos céus por elas ainda existirem. Sempre ficava na câmera contra outra câmera. Perdeu as contas de quantas em vez de uma mulher viu outra coisa. Lamentável.

Foi quando viu um nick diferente. Desde sempre se dizia a Loba Morena. E agora na sua tela surgia a Raposa Solitária. Será que haviam parentesco entre lobos e raposas? Não sabia e não estava com a menor vontade de pesquisar. Bebeu um gole curto dando seu já clássico olá. Quatro minutos depois a Raposa respondeu.

Mais um gole. Um trovão rompeu o céu madruguento anunciando uma tempestade. Comentou com a Raposa que disse ter ouvido o mesmo. Não deviam morar longe. Será que hoje teria coragem de ir até o fim? Bebeu um gole longo. A metade da garrafa já ficou para trás. Hoje ia ver até onde era capaz de ir.

Falaram sobre inúmeros assuntos até chegar ao ponto da curiosidade sobre quem era por trás. Dessa vez não estava pronta caso fosse um homem. Hesitou um instante. Não haviam homens tão interessantes acordados esse horário.

Carregando. Érika viu o próprio corpo refletido na imagem da própria câmera. Um segundo mais e apareceu o corpo da Raposa. Os fios loiros cobriam uma camisola simples de tom rosa-chá. Mais algumas frases e logo decidiram mostrar rosto. Érika tinha um rosto ovalado, olhos pequenos, boca estreita e nariz fino, tudo herdado de seu avô, que veio do Japão. A Raposa propôs um brinde. O brinde aceito ambas beberam fartos goles. A Loba tequila, a Raposa vodka.

Logo o calor - uma desculpa - as obrigou a despirem-se. Érika sentiu o corpo tremer. A respiração subiu, o sorriso fino ao ver o corpo extremamente normal da Raposa lhe trouxe planos. Agora era a hora de realizar aquele velho plano. Trocaram telefones.

Assim a Loba Morena voltou a ser Érika e, agora, a Raposa Solitária passou a se chamar Janaína. Uma ligação se fez para confirmar as identidades. Obviamente todo aquele sangue no álcool das duas trouxe uma proposta que ninguém sabe de onde surgiu. Mas terminou com Érika retorcendo os lençóis da cama bagunçando tudo. Os gemidos baixos para não acordar ninguém dos quartos vizinhos era abafado pelo travesseiro.

Silêncio. Depois de quatro minutos as vozes voltaram à chamada telefônica. Érika tomou a iniciativa, tinha que colocar todo aquele desejo para fora, aproveitar a oportunidade. Propôs um encontro para já, o dia seguinte. Final da tarde. Janaína aceitou propondo local público. Um shopping para depois decidirem para onde iriam.

A ligação acabou com Érika com um sorriso imenso. Já devia ter machucado o lábio de tanto que o mordiscou. Se levantou, arrumou o lençol, desligou o notebook e caiu na cama. Acordou no meio da tarde com Wellington a chamando. Ele sabia que ela ganhava dinheiro com a internet. Ela dizia que de madrugada era mais propício para trabalhar porque alguns dos clientes que prestava consultoria eram asiáticos. Sua meia verdade fazia sentido. Meia verdade. Meia mentira.

Limpou o quarto, cuidou das crianças. Pensou novamente em largar tudo. Mas a grana era boa demais pra abrir mão assim. Pegou o telefone. Centenas de mensagens que foram sumariamente ignoradas. Tudo aquilo não podia ter sido fogo-de-palha, enviou uma mensagem para Janaína confirmando o encontro.

Se sentia errada mentindo. Mas era preciso, não haviam empregos para mãe de duas crianças. Todo mundo achava lindo um par de filhos mas ninguém sabia o que ela e Wellington sofriam para cuidar. Quando já se dava por resignada, seu encontro havia ido por água abaixo a tela do pequeno aparelho com uma rachadura na tela na lateral superior esquerda acendeu. Sorriu de canto. Aos viventes da casa disse que tinha uma reunião na sede da empresa que ficava do outro lado da cidade e, por isso, frente às últimas luzes do dia, sairia rumo ao outro lado da cidade. Sozinha no quarto vestiu uma calça jeans normal, uma blusa preta do Nirvana, nos pés um all star baixo. Na bolsa levava, além do celular, chaves de casa, algum dinheiro e spray de pimenta uma muda de roupa íntima mais sensual, infelizmente conforto e sensualidade não passavam pelos mesmos departamentos nas fábricas de lingerie. Deu um beijo em todos e seguiu rumo a porta.

Já no portão respondeu que estava saindo, mesmo que faltasse mais de uma hora para a hora combinada. Aproveitaria para passar pela loja e ver qual era o preço daquele telefone que Amanda queria e depois shopping. Se bem que ia propor um bar de rock não muito longe dali.

Dia de realizar desejos.

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