Reencontro - parte II

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

TW: Esse texto não é indicado para pessoas sensíveis que sofrem com crises devido a traumas, pois o conteúdo pode servir como gatilho para novas crises intensas.
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A lua chamava a atenção naquela noite cheia de estrelas e luzes nas ruas. Estava fora daquele quarto. Finalmente, mais perto de casa do que nunca... sem saber exatamente se ainda tinha um lar, se seria recebida, mas tudo bem, ainda tinha alguém la. Sem caronas dessa vez. Sem identidades falsas, não precisava ser a Clara aquela noite. Apenas Helena. A mesma fodida Helena de sempre.
Tinha gente à minha volta, bares e música. Risadas, conversas e pela primeira vez em muito tempo, não temi nada. Respirei fundo.
Liberdade.
Senti liberdade. Eu, Helena, a filha das estrelas caminhando coberta por elas.

Sorri de canto. Entrei em um bar. Hora da festa.

Sentei em uma mesa perto da janela, eu não queria deixar de olhar a movimentação, a noite, não queria pensar em mais nada além daquele momento. Pensei em pedir uma dose de uísque, lembrei que estava há muito tempo bebendo coisas amargas. Pedi um vinho. E outro. E outro. E outro.
Percebi que um rapaz do outro lado do bar me olhava e sorria de um jeito tímido. Ruivo. Cabelo comprido. Há quanto tempo eu não me permitia? Retribui o sorriso. Ele veio até mim.

— Está esperando alguém? Posso sentar? Não quero atrapalhar...

— Tudo bem, pode ficar — respondi,um pouco sem jeito — tô sozinha.

Ele sorriu da forma mais covarde que eu já vi alguém sorrir.
Começamos uma longa conversa sobre música, ele também tocava piano, ouvia Björk, criava lagartas e comentou sobre algumas tatuagens. Seu nome era Lucas.

— Desculpa a falta de atenção, Lucas, meu nome é Helena, igual o da minha mãe.

— Você tem o nome da sua mãe? Ela deve gostar disso.

— Na verdade eu nunca vou saber. Ela morreu quando nasci. Meu pai colocou o nome em mim como forma de homenagem, senão eu teria algum nome gringo como meus irmãos. Meu pai é inglês.

Engoli seco quando me dei conta de que havia contado parte da minha história pra um estranho... ou pra alguém que não fosse a Janaína. Lucas perguntou se eu estava bem ao notar meu longo silêncio. Eu pedi dois shots de tequila. Precisávamos apagar essa pequena parte da noite.
Os dois shots logo se tornaram seis. Lucas puxou a minha mão com empolgaação e me levou até um canto um pouco escondido do bar, virou um pino de cocaína sobre a mesa e separou em finas e longas carreiras. Olhei, estagnada.

— Ei, Helena, tá tudo bem. Vamos nos divertir. Dançar como se o amanhã não existisse. A lua está linda lá fora. Você está quase com sono. Não precisa ter medo.

A forma como Lucas falava era firme e confiante. Não hesitei mais. Senti minhas narinas e minha gengiva ficando dormentes. Achei a sensação engraçada. Meu coração batia mais rápido. De repente, eu tinha super poderes. Não tinha medo de absolutamente nada.
Lucas e eu saímos de fininho do bar sem pagar a conta.
Corremos pela rua como duas crianças, rindo, atravessamos uma avenida, paramos perto de outros bares, um estacionamento e um pequeno beco. Gargalhamos. Ele deu um leve toque no meu ombro exclamando "HELENA NÃO ME PEGAAAAA!" E correu em direção ao beco.
Eu ri.

— Lucas, esqueci de perguntar a sua idade, mas presumo que não tenha mais de doze, acertei?

Ele não respondeu. Estava levando a sério a brincadeira, talvez. Comecei a procurar. Não havia luz no beco. Belo esconderijo.
Fui surpreendida por alguém me encostando na parede.

— Te peguei!

— Caralho, Lucas, que susto!

Ele acariciou meu rosto. Nos beijamos. Ele me beijava intensamente, juntava o corpo dele ao meu, cada vez mais. Suas mãos exploravam minha pele, ele descia os lábios pelo meu rosto, queixo, pescoço... Abri os olhos. Senti meu coração subindo pela garganta. Eu não estava mais confortável.

— Lucas... Ei... acho que não vai rolar.

Ele continuava, segurou meu corpo com mais força, colocou as mãos por debaixo da minha blusa. Tentei falar de novo.

— Lucas, para! EU NÃO QUERO, ME SOLTA!

Ele colocou a mão no bolso, foi até o meu ouvido e disse baixinho "Helena, querida, não corta o clima." Senti algo frio se aproximando do meu pescoço. Era o canivete que Lucas havia tirado do bolso.

Meus lábios ficaram mudos.
Meu corpo ficou estático.
Minhas blusa, rasgada.

"Hora da morte" pensei. É claro que o vislumbre de alegria plena não me cabia também. É claro que isso teria um preço alto. Que ilusão estúpida acreditar que eu sairia ilesa disso! A felicidade era para os bons e eu nunca, nem de longe fui boa ou coisa parecida. Nunca sequer vali a pena. Lucas rasgava minhas roupas e a lâmina fazia pequenos cortes em meu corpo enquanto eu pensava que se talvez eu não tivesse vindo ao mundo, minha mãe estaria viva, meu pai fosse um homem melhor, Lilian estaria com alguém que realmente a amaria sem se entupir de antidepressivos. Minha existência era um erro que deveria ser corrigido. Ou que toda essa desgraça fosse punição do Universo pelo meu impulso interno de sobreviver. Estúpida Helena. Maldita Helena.

O tempo parou.
Vi duas mulheres saindo de um bar longe indo na direção do estacionamento que era próximo ao beco. Não sei explicar, mas isso me destravou, ao menos parcialmente.

— Lucas... Me ouve. Isso vai ser melhor se você souber o que eu sei fazer... — tentei forjar um tom safado com o resto de coragem que ainda tinha em mim.

Ele me soltou aos poucos, fui até ele, até o pescoço dele. Explorei os pontos fracos. Não era tão difícil descobrir. Por dentro, eu estava quebrada, ele porém, estava entregue. Entregue o bastante pra deixar as mãos frouxas. Imbecil. Peguei o canivete rápido e quando ele esperava o "gran finalle", cravei o canivete em sua coxa e corri. Corri como nunca antes. Corri em direção àquele estacionamento. Corri enquanto as lágrimas mal me deixavam enxergar. Minha visão turva só me permitiu ver um carro de porta aberta com duas mulheres. Saltei pra dentro gritando:

— LIGUEM O CARRO, FUJAM, RÁPIDO, POR FAVOR, AQUI NÃO É SEGURO! Rápido... Por... favor...

Notei minha voz perdendo força.
Meu corpo também.

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Meu corpo balançava e meus joelhos ardiam. Eu ainda estava de olhos fechados, não podia estar em uma ambulância outra vez. Estaria deitada, mas não estava. Claramente eu estava sentava em algum carro, um cinto me prendia. Tive medo de abrir os olhos e notar a figura que estaria ao meu lado.
Havia tido um sonho estranho do qual me lembrava vagamente, mas acho que sonhei com...  Puta merda, que dor de cabeça! Respirei fundo. Senti um perfume familiar. Muito familiar. Respirei fundo novamente tentando esticar o corpo levemente quando ouvi a voz mais suave que eu poderia ouvir naquele momento:

— Helena?

Não. Impossível.

— Helena? Ei, não consegue mais falar? Puta merda, devia ter te levado em algum hospital.

Virei o rosto pro lado da janela. Não podia acreditar.

— Jana, você tem isqueiro aí?

— VAI SE FODER, HELENA, VOCÊ SOME POR MAIS DE UM ANO, DESMAIA TODA MACHUCADA NO MEU CARRO DO NADA E A PRIMEIRA COISA QUE ME PEDE É UM ISQUEIRO?

— Também senti sua falta, Jana. — Disse enquanto explorava o porta-luvas. — Eight? Sério? Desde quando você fuma? Pelo menos achei um isqueiro. — Debochei ao acender um Carlton.

— Eu não fumo, você sabe. Isso é da Lob...Helena, você não deveria fumar no meu carro. Para de mudar de assunto, Hel, o que aconteceu? Porra, você sumiu sem sequer dar certeza se voltaria e eu não desacreditei, não deixei de esperar por isso um único dia. Você estava assustada, machucada e ainda tá suja de sangue. Dá pra falar?

— Jana... Eu... Eu não sei, eu acho que... — as palavras não saíam, não importa o quanto eu tentasse. Tudo estava ali. As marcas, as dores. Lembranças correndo tão rápido a ponto de me deixar tonta, mas algo maior estourava no peito. Algo que transbordava. Um longo choro veio. Choro seguido de soluços. Incontrolável em meio a dezenas de pedidos de desculpa.

— Ei, minha pequena, tudo bem. Tudo bem. — Janaina segurou minha mão, sua mão esquerda permanecia no volante — Eu te encontrei. Você me encontrou. Vou te proteger. Estamos juntas agora. Vamos ter tempo. Não vou mais te soltar. Nunca mais. Eu nunca mais vou soltar a sua mão. — Jana deixou cair alguma lagrimas enquanto me olhava daquela forma tão terna, sorrindo. — Eu te amo, Helena Vincent.

Sorri entre as lagrimas e apertei com força a mão de Janaína.
Estávamos na estrada e ainda longe bem de casa, mas eu sabia: já tinha encontrado meu lar.

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