Reencontro

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

TW: transtorno de estresse pós traumático. A leitura desse conto não é recomendada caso você tenha vivido um trauma recente. A escolha entretanto fica a seu caráter. Os escritores não se responsabilizam pelo conteúdo uma vez que há aviso prévio. Em caso de TEPT, procure ajuda!

Trocava de canal: futebol. Foda-se. Meu pai conseguiu desenvolver em mim verdadeira repulsa por canais de esportes e esses comentaristas babacas. Além do público que não é lá muito imprevisível: aqueles caras que tem todo um estoque de cerveja na geladeira e se limita a coçar as bolas no sofá da sala enquanto a esposa revira páginas de pesquisa na internet com a busca "como agradar o marido". Tsc. Deprimente. Lembrava tanto meu pai e Lilian. Ele era um bom marido até certo ponto, mas quando decidi ir embora, por mais que Lilian não conseguisse disfarçar seu repúdio por mim, era visível o quão depressiva ela estava. As gavetas tinham caixas e caixas e prozac, exodus, sertralina... o que mais ela tentaria pra levantar o ânimo? Cheguei a ouvir sem querer ela chorar no telefone dizendo que se sentia um lixo. Nem auto-estima a mulher tinha mais. Será os filhos? Peter já tinha quase dez anos... mas Mik? Sequer tinha completado um ano quando parti. O corpo de Lilian mudou depois do nascimento do Mik, mas... Não. Meu pai ainda era um inglês. Não se deixaria levar por tamanha futilidade. Ou sim? Não seria improvável se tratando de um Stewart. Merda. Minha cabeça outra vez estava a mil. Outra vez mudei de canal. E de novo. E de novo. Nem olhei pra tela, agora minha mente estava presa em Mik, meu caçula. Lembrei da última vez em que fiquei naquela casa e tentei ver como um lar. Estava tocando piano, Mikael puxava a barra da minha calça tentando escalar, ele gostava de pressionar as teclas, espacialmente as pretas. Peter era um garoto magrelo, extremamente branco como eu, tinha até umas olheiras. Cabelos lisos negros, ou quase. Era calado. Lia Edgar A. Poe e Goethe, como eu. Ao contrário, não comentava. Peter parecia aquelas crianças que haviam sofrido um trauma e ficaram mentalmente sequeladas. Porra, eu não devia ter rido disso. Ainda tem vinho no frigobar? Em todo esse tempo eu não pensei nem por um minuto neles. Exceto no olhar de Mik. O olhar dele é diferente de tudo. Mik não é como meu pai, nem como Lilian ou Peter. Não conheci minha mãe para comparar. Já Mik...  tem os cabelos loiros em um tom que quase lembram fogo e seus olhos acompanham a cor do cabelo. Seu olhar queima tudo o que ele olha. Atravessa tudo. É como se ele visse através da pele, através do tempo e das circunstâncias. Tão pequeno e tão conectado a mim.
A TV estava de fato entediante tanto como aquele lugar — que convenhamos, em muito tempo era o mais limpo, tranquilo, seguro e decente que já estivera. Ao menos tinha certeza de já não estar mais tão longe de tudo.
Definitivamente, é hora de descer desse quarto e beber, sair de mim. Minha cabeça permanecia sobrecarregada.
Levantei da cama, calcei os velhos coturnos que não me acompanhavam há pouco tempo e vesti a jaqueta jeans que fugiu comigo e permaneceu comigo e possui tantos rasgos e marcas quanto eu. Marcas. Meu olhar ficou perdido por alguns segundos, tenho certeza disso, minha mente voou. Senti meu corpo sendo arremessado ao chão. Senti peso sobre mim. Senti cheiro de mato, de suor, de álcool, meu corpo doeu novamente. Estremeci. Apertei os olhos com força, deixei uma lágrima cair. Lembrei daquela mão áspera em direção ao meu rosto... meu celular sinalizou uma nova mensagem. Abri os olhos, respirei fundo. Malditas crises estranhas, outra vez! Olhei para o celular enquanto minhas mãos ainda estavam trêmulas. Era Janaina. Acendi um cigarro. "Helena Vicent Stewart, onde caralhos está você?" Eu vou ligar pra ela. Eu juro. Mas antes eu vou esquecer tudo o que vivi. Antes deixarei Clara perdida dentro de alguma garrafa ou algum cobertor. Antes reencontrarei Helena.

0 comentários: