Girassol

sábado, 16 de março de 2019

"Isso não vai dar certo" pensou Helena se levantando com a maior sutileza felina que ela tinha dentro de si. Quando girou o trinco da porta temeu que Janaína pudesse ter acordado. Não, ela tinha no semblante uma exaustão que não achava justo em um rosto tão bonito. Caminhou pela casa com meias nos pés sem se importar se as sujaria a tal ponto que teria de se desfazer delas.

Quando chegou à porta da cozinha que dava acesso para a varanda dos fundos notou que a mesma estava trancada e que a chave não estava ali. O excesso de zelo de Janaína lhe irritava às vezes. Não queria sair pra usar droga, só queria ver o céu. Por sorte a janela da cozinha não tinha grades como as demais então, em pouco menos de um minuto estava do lado de fora ouvindo aquele som abafado da cidade debaixo de um céu estrelado. Não era tão estrelado quanto na sua viagem... com algum esforço levou uma das espreguiçadeiras para o pequeno gramado, tomando cuidado para não atropelar as hortaliças que Janaína plantou.

Céu estrelado. Hortaliças. Insônia. Se lembrou de uma menina, na verdade uma jovem mulher que conheceu. Corpo pequeno, magra, pouco peito, pouca bunda, pernas magras. Sempre com vestido ou saias longas e blusas de alça. Sempre pra mostrar o quão magra era. Lembrando agora Helena quase a relacionou com hippies. Mas ela morava em uma casa pequena, bem aconchegante alguns quilômetros da cidade. Lá tinha uma horta com tomates, pepinos, alface, cebola, morango, laranja, limão, umas duas dúzias de galinha além de, vez por outra, pescar num riacho ali perto.

Helena chegou lá depois de passar dois dias na cidade e praticamente ser escorraçada de lá por ser de fora. Cidades pequenas eram uma merda. Foi quando viu aquela garota magricela, não mais que vinte anos, lhe oferecendo um suco verde. Uma sirene quase lhe tirou das lembranças. Era a primeira coisa, o  tipo refeição que tinha em quase uma semana. Havia roubado meia dúzia de laranjas no caminho até aqui e tomava água das bicas que encontrava estrada afora. Quando acordou a segunda noite na praça a polícia local perguntava quem era. Ora se dizia viajante, ora se dizia em uma jornada espiritual... mas naquele dia disse que estava só passeando pela região, que morava em uma cidade próxima e que havia se desencontrado de sua carona. Helena sempre teve uma habilidade sobre-humana para inventar histórias sobre si.

Foi quando a hippie interviu e disse que me "ajudaria". No caminho até a casa dela Helena soube que a moça magérrima não havia acreditado em uma só palavra mas que sabia que ela não era má pessoa, só estava em busca de algo maior que nem ela sabia o que era. Ao ser desmascarada assim Helena quis saber como ela sabia de tudo aquilo. "Porque eu já passei por isso. Aqui eu me encontrei... mas aqui não é o seu lugar.". Além de hippie ela tinha uns ares de bruxa. Como era de se esperar a casa não tinha grandes luxos, uma televisão antiga, um notebook com adesivos de viagem... era uma casa humilde mas muito confortável e cheia de girassóis.

Ali Helena aprendeu a lidar com a natureza, a ouvir o próprio corpo. A respeitar o tempo das coisas. Teve de aprender a esperar uma semente virar muda. Uma muda virar planta. Uma planta dar frutos. Os frutos amadurecerem. Os frutos maduros serem colhidos. Os frutos colhidos saboreados. Ficou quase dois meses lá. Por um instante sentiu saudade daquela paz. Mas sabia que não era pra voltar lá. Foi uma etapa vencida. Superada. Claro que planejava voltar e visitar um dia, mas primeiro tinha de cuidar de si. Ficou tanto tempo na estrada, deu tanta volta que se esqueceu que tinha aqui, com Janaína, tudo que precisava. Quando as estrelas começavam a sumir dando lugar a um ceu azul escuro que logo clareava ouviu a porta da cozinha destrancar. Ouviu um resmungar baixo vindo da porta e, logo em seguida, haviam duas espreguiçadeiras no gramado.

- Sabe, Hell - Janaína se deitou deixando o corpo relaxar sobre o móvel - Faz tempo que não vejo o nascer do sol.

- Na estrada eu via quase todo dia.

- Você fala pouco daqueles dias... - Janaína não falou como se cobrasse ou intimasse a amiga a falar - ... sente saudade da estrada?

- Um pouco - Helena respondeu olhando a amiga com o canto do olho esperando uma repreensão que não veio - Estava lembrando de uma moça que conheci... loira, bem magra, tinha a mesma mania tua de viver de saia longa, mora lá perto da fronteira com o Paraguai...

- Longe... - Janaína soltou um suspiro baixo - ... conta essa história.

E assim, até o sol subir vários graus céu acima Helena contou toda a história que havia relembrado horas atrás, sobre como a insônia, o céu estrelado e as hortaliças lhe lembraram da pequena que, provavelmente, nesse instante, estaria colhendo os morangos que Helena havia plantado e os vendia na cidade junto com duas dúzias de pés de alface, dez dúzias de ovos e, quem sabe até, um grande namorado pescado horas atrás. Ao fim da história Janaína se propôs a buscar pão enquanto Helena guardava as espreguiçadeiras. Concordou sem reclamar. Quando colocou os dois móveis dentro da varanda voltou ao canteiro onde hortaliças cresciam frondosas e, no meio delas, um girassol reinava absoluto. Lhe tocou com carinho e ternura enquanto, junto com uma lágrima solitária balbuciou:



- Obrigada... Isadora.