Voando

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Quando eu era criança eu tinha um passarinho amarelo
Eu não entendia que ele precisava voar
Ele sempre comeu muito menos que os outros pássaros livres e acredito que daí tenha vindo a expressão
"Comer feito passarinho".
Quem disse isso pela primeira vez devia criar um pássaro numa gaiola.
Os outros pássaros lá fora comiam tanta coisa que jogavam pra eles e o meu pássaro...
Ele mal comia.
Ele também cantava muito mais alto que os outros pássaros. Ele cantava o tempo todo
E eu podia jurar que ele estava feliz.
Eu admirava suas notas inalcançáveis
Uma vez pensei em abrir a gaiola e deixar ir
Talvez tenha sido o dia em que realmente o amei. Hoje sei.

Mas ele cantava e era feliz

Ele cantava porque era feliz, afinal
Que dedução estúpida!

Quando fazia calor demais, colocavam um pote com água pra ele se molhar
Quando o tempo era frio,jogavam uma pequena manta sobre sua gaiola e
eu tinha tanta certeza que era suficiente
porque mesmo que a manta o privasse da luz do dia e talvez nem o aquecesse como esperavam, ele continuava cantando.

Hoje eu sei que meu pássaro via os outros pássaros voando e sentia que era uma ave estúpida
que tinha asas em vão
porque nunca pôde voar.

Hoje eu sei que seu canto era agonia
Que seus agudos eram tão altos quanto o desespero de estar só e preso em uma pequena gaiola.

Quando ele morreu, eu o enterrei na minha alma.
Morreu acreditando que um dia poderia voar como os outros
Com os outros
Morreu em uma manhã fria com os olhos congelados para o céu azul de inverno.

Morreu só.
E antes de morrer
Cantou.

O Infinito de Schrödinger

domingo, 30 de junho de 2019

Eu transbordava convicções e incertezas constantemente chocando-se, ainda assim, sempre convencida do que faria. Ainda assim, sabendo o que dizer. Nunca voltando no que falava. A lua era minha aliada. Ao cair da noite, os holofotes deixavam em destaque aquele velho sorriso de canto maroto que gostava de hospedar meu rosto. As luzes deixavam em evidência uma multidão que gritava por mim, a qual eu via e me jogava em cima das tantas mãos que me apoiavam, faziam cócegas e, enquanto brincávamos com as estrelas, ríamos a noite toda. O show nunca acabava. As viagens eram insanas. Indescritíveis.
Só que você veio.
Novamente, VOCÊ veio.
Você me disse que eu podia te ligar a qualquer hora da madrugada.
Você ofereceu suas mãos para me guiar no escuro com as luzes totalmente apagadas... Céus, eu nunca provara tamanha insanidade antes! Eu te quis! Como quis!
Eu gostava de brincar com as estrelas.
Eu gostava da multidão.
Gostava dos risos...
... mas o que era tudo isso perto de fechar os olhos e imaginar seus braços estendidos à minha frente em uma imensidão escura e vazia?
Apenas você e eu.
Assustador. Desafiador. O suficiente pra deixar tudo de lado e confiar, permitir
Me entregar.

As luzes se apagaram.
O mundo se calou.
Estávamos a sós.
estendi a mão, toquei seus dedos, você estava lá.
Sabe bem o quanto sou desconfiada.

Dei os primeiros passos de olhos fechados em sua direção, tudo era tão vazio que só era possível ouvir o eco. Mudei de ideia.
" - Vem você primeiro! Se joga nos meus braços! Eu te pego!"

Pude ouvir você engolir a seco.
Fiquei parada. Esperei. Você ofegou. Demorou a se decidir, mas começou a andar. Você veio. Mais rápido. Um pouco mais rápido. Quando percebi, estava correndo. Estendi os braços e você se jogou neles.
Te segurei forte. Estava em êxtase. Você confiava em mim.

Permanecemos ali, por alguns instantes em silêncio sentindo o momento, o tremor do corpo, a adrenalina, o pulsar do peito, a respiração ofegante... mal sabíamos o que pensar. Eu queria te beijar, confesso.
Talvez você também quisesse. Preferi não arriscar.
Você foi chegando perto do meu rosto, meu coração desacelerou. Senti minha pele gelar. Internamente, implorei pra você parar (por não saber o que faria em seguida), embora meu corpo gritasse para que você continuasse e fosse intenso.
Seus lábios tocaram o canto da minha boca. Alguém te chamou e você sumiu. Pela primeira vez eu estava sozinha no meio do nada. Lá estava eu, confusa e sem saber onde estava, o que tinha feito e sem me dar conta de que já havia começado o meu caos: ali comecei a esquecer quem eu era.


Perdida, lembrei que ainda tinha o cheiro das árvores, da poluição dos carros e a companhia das estrelas no céu. Respirei fundo. Não consegui notar meu olfato. Algo estranho no meu nariz... eu estava para chorar? Olhei para o céu em busca das estrelas, queria convida-las para brincar.
O céu estava vazio. As lágrimas vieram e em pouco tempo tornaram-se incessantes.
Sentei-me ao chão, apoiei os cotovelos sobre os joelhos, debruçada e chorei como não chorava há muito tempo.
A imensidão ao meu redor havia se tornado uma compacta caixa preta. Sem muito espaço. Sem saída. Sem rastros seus. Eu estava ali, presa e em pânico.
Chorei até adormecer.

Acordei com meu celular vibrando, era você. Me chamou por um apelido carinhoso. Que houvera? E aquela voz que havia te levado pra longe? Onde estava? Subitamente, você apareceu ao meu lado dentro da caixinha e sentou-se comigo. Contou-me segredos. Eu ri quando você me falou sobre suas manias na época de escola. Você riu quando contei das roupas que eu costumava usar. Discutimos sobre metafísica. Falamos sobre buracos negros, sobre galáxias e vidas em outros planetas. Conversamos sobre viagem no tempo, sobre séries antigas, sobre comédias românticas e aquele show que todo mundo tinha ido, exceto a gente. Conversamos a madrugada toda e então você precisou ir, mas não chorei dessa vez. Você prometeu voltar no outro dia.
Tomei uns dois ou três comprimidos e esperei que o dia passasse. De qualquer forma, eu só precisava te ver outra vez.
Eu não percebia, mas aos poucos eu não notava mais a caixa, não notava a escuridão ou o isolamento. Eu não notava mais nada que não fosse você.
O tempo passou tão rápido e à medida que você sumia, eu descobria que não havia nenhuma luz aqui.
Tudo bem, você voltaria depois.
E quando partiu outra vez, percebi que também não sabia por onde você saía.
Não há janelas ou portas.
Não que eu possa ver.
Talvez só você saiba e me faça crer que até o oxigênio vem de você.
Mas tudo bem, porque você volta e então respirar será simplesmente imperceptível e automático.
Só não demora muito pra voltar, tá?
É que de um tempo pra cá as tuas idas são cada vez mais longas e a gente já não conversa
Não posso mais te falar das estrelas, como vou te falar delas se não as vejo há anos?
Não sinto mais você respirar do meu ar de quem conhece o infinito
Talvez por isso te vejo cada vez menos...
E como vou saber do infinito se tudo aqui é tão limitado? Nem do cheiro das árvores me lembro!
E notei agora, estou em dúvida
A caixa está ficando pequena?
Ou eu cresci?
Não tenho como saber...
Me diz você.

Ouro — Parte 2

segunda-feira, 8 de abril de 2019


[TW: Dependência química.]

Faziam alguns dias desde que Helena havia saído daquela situação que demonstrava meu fracasso. No entanto, no dia que ela despertou me agradeceu, choramos juntas abraçadas. Tudo isso, dentro da minha cabeça gerava um parafuso absurdo, claro, não podia demonstrar na frente dela minha confusão mental. Por isso me atinha aos meus clientes e, nesse exato momento, às tarefas de casa. Enquanto eu terminava de limpar a louça do almoço ela estava fixa na frente da televisão, mal piscava. Aquele silêncio dela me sufocava profundamente e eu não via forma de romper aquela muralha que ela tentava colocar entre a gente. Era como se ela estivesse sabotando nossa relação pra eu largar ela à própria sorte. Ela não teria isso, não enquanto eu pudesse respirar. Cozinha em ordem me sentei ao lado dela no sofá. Ela não moveu um músculo. Em dois minutos entendi a dinâmica do programa sobre pessoas tentando sobreviver na selva por conta própria. No intervalo não aguentei mais e rompi o silêncio.

- Sabia que odeio te ver calada?

Ela não respondeu. Não se moveu. Parecia uma estátua de cera deixada no lugar da Helena verdadeira. A única coisa que diferenciava ela de uma réplica em tamanho natural era a respiração e eventuais piscadas. Depois de dois minutos resolvi insistir.

- Sério, odeio te ver quieta assim.

- É? - Ela falou movendo apenas os músculos necessários para tal ato, sem se virar - E o que quer que eu fale?

- Não sei - Eu realmente não sabia puxar assunto, por isso a raposa era tão útil, embora devesse usar menos - Que tal sobre o que estamos assistindo?

- Francamente, Janaína - Ela soltou um suspiro longo - Às vezes você me cansa.

- Canso? - Eu senti que explodiria, minha pulsação acelerou, meu sangue começou a borbulhar, mas respirei fundo, controle - Tomou seus remédios?

- Claro que tomei - Ela me olhou, os olhos dela tinham uma fúria, uma raiva que eu não esperava vindos dela, pelo menos não na minha direção - Ou acha o quê? Que quero ficar presa nessa merda de casa pra sempre?

Foi a explosão que eu não queria ter visto. Não agora. Eu não estava total e emocionalmente recuperada dos últimos acontecimentos. Mesmo com as lágrimas querendo me subir pela garganta eu sorri virando o olhar para a tela, o intervalo acabou. Ela virou o olhar também, parecia interessada no assunto do programa. Era como se Helena tivesse picos de estresse, pequenas explosões e eu, como era a única pessoa que ela via todos os dias, era quem tinha de ser do esquadrão antibombas inteiro. Não vi absolutamente nada do programa. Via borrões e fragmentos de som às vezes rompiam meu pensamento acelerado.

Helena estava do meu lado esquerdo. Meu maxilar inferior tremia, a visão completamente turva e aquele gosto ferroso na boca. Por dentro eu estava me dando tapas na cara. "Engole esse choro, Janaína, você não é mais menina. Você precisa ser forte. Você foi forjada na dor pra ser forte." decididamente a voz da raposa às vezes me trazia uma espécie de lucidez tortuosa. A vinheta chamou para o intervalo seguinte já anunciando a próxima atração, alguma coisa relativa com restauração de carros antigos.

- Que bom - A voz ameaçou sair embargada pelo choro, resolvi deixar a raposa assumir um instante, depois recolocava ela na coleira - Me preocupo com você.

- Se fosse verdade me deixaria ir.

- Não te deixo ir porque me preocupo.

- Sabe que isso é um paradoxo - Ela me olhou de canto de olho, parecia pronta a desatar num riso - Não é mesmo?

- Claro que é - puxei a coleira da raposa de volta para sua gaiola - por isso existimos.

- E por isso sobrevivemos.

- Por isso sobrevivemos...

Concordei com ela sendo brindada pela abertura do programa seguinte enquanto Helena soltava um riso curto. Eu ainda precisava aprender a lidar com essas mudanças repentinas de humor. Mas, como ela disse, sobreviveríamos.

Ouro — parte I

sábado, 6 de abril de 2019

[TW: Dependência química.]
                     -

— Sabe que não é assim que vai resolver isso. Você não vai encontrar nada, Hel, e não vai sair daqui. Conversa comigo. — Disse Janaína a Helena tentando esconder o tom angustiado e assustado por ver a amiga em tamanho surto.

Helena passou por Janaína como se não tivesse ouvido uma palavra. Tremula, voraz, quase em transe, seguia revirando os bolsos de todas as calças e casacos que encontrava em busca de alguns trocados, uma cópia das chaves ou quem sabe um celular. Um celular seria útil. Talvez alguém pudesse passar algo pela fresta da janela do banheiro, já que Janaína ficaria atenta à janela da cozinha. Mas era utopia demais acreditar que Janaína marcaria tamanha bobeira. Estava esperta desde a última overdose. Era cuidadosa em excesso. "O jeito seria esperar Janaína cair no sono ou ir em um daqueles encontros misteriosos dela e então dar uma escapada rápida, só mais um vez não faria tão mal" pensou Helena ao tirar três notas de vinte reais do bolso de uma velha camisa xadrez no fundo do armário, a qual mal lembrava da existência. Seus olhos brilharam ao contemplar as notas. Helena sentia o corpo doer e arrepiar constantemente. Três notas que naquele momento apareceram como vislumbre de um alívio imenso.
Instintivamente, saiu andando rumo a porta quando Janaína a segurou pelo braço.

— Enlouqueceu?!

— Jana, meu corpo tá doendo...

— Hel, a gente veio pra cá pra você ficar livre disso. Lembra há quanto tempo voce tá... qual é o termo? Limpa! E eu estou tão orgulhosa de você! A gente começou a deixar a porta da sala aberta durante o dia enquanto eu estou acordada, você pode fumar seus cigarros no jardim, pintar seus quadros lá fora, confiança, lembra?

— Eu sei, Jana, eu sei, olha... Eu tô vomitando, não aguento isso. Não tô conseguindo, ok? Meu corpo tá fodido e eu tô com calafrios o tempo todo e...

— E não importa, Helena Vincent! Você não vai sair daqui, você precisa ser forte. Você é forte e sabe disso.

— "Não importa"? Foi isso que eu ouvi? — indagou Helena, olhando fixamente Janaína nos olhos enquanto seu braço continuava preso.

— Hel, para com isso. Você entendeu o que eu quis dizer.

— Eu acho que você que não entende...

— Helena... Vem, vamo deitar, ver alguma coisa na TV assim no meio da tarde... — Janaína tentou arrastar Helena pelo braço.

— Janaína, tira a mão de mim. — Respondeu Helena, inesperadamente, ríspida, fria e distante.

Janaína engoliu seco. Não disse mais palavra alguma, apenas concedeu o pedido de Helena. Aproximou-se da porta e girou a chave cuidadosamente, devagar, enquanto observava Helena por cima do ombro.

Helena acendeu um cigarro ao abrir a garrafa de vinho que a família de Janaína guardara por gerações. Uma das poucas coisas que Janaína carregava do passado. Helena sabia, mas não parecia pensar. Não parecia ser a Helena. Era o mesmo corpo, o mesmo cabelo despontado no ombro recém tingido de preto. Os pés sobre outra cadeira. Fumava enquanto bebia no gargalo mesmo o vinho.

Janaína tentou conter as lágrimas, raramente chorava mas ver Helena não sendo Helena era suficiente para fazer seu coração transbordar. Rapidamente, escondeu-se no banho e permitiu que as lágrimas caíssem. Implacáveis.
Chorou pelo que acabara de acontecer.
Chorou por não entender o motivo de ter mantido aquela garrafa por todos esses anos.
Chorou por lembrar constantemente de seus pais nas ultimas noites.
Chorou por não entender mais o que estava acontecendo.
Janaína chorou por talvez nunca ter conseguido entender a si mesma e nunca ter se permitido transbordar daquela forma. E já nem sabia mais o que lavava seu rosto: se a água do chuveiro ou as tantas lágrimas incontroláveis. Soluçava.
Chorou por Helena.
Helena.
Não podia perder tanto tempo no banheiro. Quase uma hora havia se passado. Saiu enrolada na toalha com o rosto inchado torcendo pra que Helena não perguntasse nada naquele momento... E ela não perguntaria.
Helena estava dormindo na cama de Janaína abraçada com o pato de pelúcia que havia ganhado de Janaína há tantos anos atrás.
Uma última lágrima de alívio correu pelo rosto de Janaína. "Vai ficar tudo bem" "vai ficar tudo bem" a moça dos cabelos cor de ouro repetia mentalmente de forma incessante enquanto apertava os olhos, quase que como uma oração.
"Minha filha, até o ouro passa pelo fogo pra ser refinado." Janaína lembrou da frase que sua avó costumava dizer. Essa fase lhe queimava o peito.

Talvez fosse só fogo refinando o ouro.

Girassol

sábado, 16 de março de 2019

"Isso não vai dar certo" pensou Helena se levantando com a maior sutileza felina que ela tinha dentro de si. Quando girou o trinco da porta temeu que Janaína pudesse ter acordado. Não, ela tinha no semblante uma exaustão que não achava justo em um rosto tão bonito. Caminhou pela casa com meias nos pés sem se importar se as sujaria a tal ponto que teria de se desfazer delas.

Quando chegou à porta da cozinha que dava acesso para a varanda dos fundos notou que a mesma estava trancada e que a chave não estava ali. O excesso de zelo de Janaína lhe irritava às vezes. Não queria sair pra usar droga, só queria ver o céu. Por sorte a janela da cozinha não tinha grades como as demais então, em pouco menos de um minuto estava do lado de fora ouvindo aquele som abafado da cidade debaixo de um céu estrelado. Não era tão estrelado quanto na sua viagem... com algum esforço levou uma das espreguiçadeiras para o pequeno gramado, tomando cuidado para não atropelar as hortaliças que Janaína plantou.

Céu estrelado. Hortaliças. Insônia. Se lembrou de uma menina, na verdade uma jovem mulher que conheceu. Corpo pequeno, magra, pouco peito, pouca bunda, pernas magras. Sempre com vestido ou saias longas e blusas de alça. Sempre pra mostrar o quão magra era. Lembrando agora Helena quase a relacionou com hippies. Mas ela morava em uma casa pequena, bem aconchegante alguns quilômetros da cidade. Lá tinha uma horta com tomates, pepinos, alface, cebola, morango, laranja, limão, umas duas dúzias de galinha além de, vez por outra, pescar num riacho ali perto.

Helena chegou lá depois de passar dois dias na cidade e praticamente ser escorraçada de lá por ser de fora. Cidades pequenas eram uma merda. Foi quando viu aquela garota magricela, não mais que vinte anos, lhe oferecendo um suco verde. Uma sirene quase lhe tirou das lembranças. Era a primeira coisa, o  tipo refeição que tinha em quase uma semana. Havia roubado meia dúzia de laranjas no caminho até aqui e tomava água das bicas que encontrava estrada afora. Quando acordou a segunda noite na praça a polícia local perguntava quem era. Ora se dizia viajante, ora se dizia em uma jornada espiritual... mas naquele dia disse que estava só passeando pela região, que morava em uma cidade próxima e que havia se desencontrado de sua carona. Helena sempre teve uma habilidade sobre-humana para inventar histórias sobre si.

Foi quando a hippie interviu e disse que me "ajudaria". No caminho até a casa dela Helena soube que a moça magérrima não havia acreditado em uma só palavra mas que sabia que ela não era má pessoa, só estava em busca de algo maior que nem ela sabia o que era. Ao ser desmascarada assim Helena quis saber como ela sabia de tudo aquilo. "Porque eu já passei por isso. Aqui eu me encontrei... mas aqui não é o seu lugar.". Além de hippie ela tinha uns ares de bruxa. Como era de se esperar a casa não tinha grandes luxos, uma televisão antiga, um notebook com adesivos de viagem... era uma casa humilde mas muito confortável e cheia de girassóis.

Ali Helena aprendeu a lidar com a natureza, a ouvir o próprio corpo. A respeitar o tempo das coisas. Teve de aprender a esperar uma semente virar muda. Uma muda virar planta. Uma planta dar frutos. Os frutos amadurecerem. Os frutos maduros serem colhidos. Os frutos colhidos saboreados. Ficou quase dois meses lá. Por um instante sentiu saudade daquela paz. Mas sabia que não era pra voltar lá. Foi uma etapa vencida. Superada. Claro que planejava voltar e visitar um dia, mas primeiro tinha de cuidar de si. Ficou tanto tempo na estrada, deu tanta volta que se esqueceu que tinha aqui, com Janaína, tudo que precisava. Quando as estrelas começavam a sumir dando lugar a um ceu azul escuro que logo clareava ouviu a porta da cozinha destrancar. Ouviu um resmungar baixo vindo da porta e, logo em seguida, haviam duas espreguiçadeiras no gramado.

- Sabe, Hell - Janaína se deitou deixando o corpo relaxar sobre o móvel - Faz tempo que não vejo o nascer do sol.

- Na estrada eu via quase todo dia.

- Você fala pouco daqueles dias... - Janaína não falou como se cobrasse ou intimasse a amiga a falar - ... sente saudade da estrada?

- Um pouco - Helena respondeu olhando a amiga com o canto do olho esperando uma repreensão que não veio - Estava lembrando de uma moça que conheci... loira, bem magra, tinha a mesma mania tua de viver de saia longa, mora lá perto da fronteira com o Paraguai...

- Longe... - Janaína soltou um suspiro baixo - ... conta essa história.

E assim, até o sol subir vários graus céu acima Helena contou toda a história que havia relembrado horas atrás, sobre como a insônia, o céu estrelado e as hortaliças lhe lembraram da pequena que, provavelmente, nesse instante, estaria colhendo os morangos que Helena havia plantado e os vendia na cidade junto com duas dúzias de pés de alface, dez dúzias de ovos e, quem sabe até, um grande namorado pescado horas atrás. Ao fim da história Janaína se propôs a buscar pão enquanto Helena guardava as espreguiçadeiras. Concordou sem reclamar. Quando colocou os dois móveis dentro da varanda voltou ao canteiro onde hortaliças cresciam frondosas e, no meio delas, um girassol reinava absoluto. Lhe tocou com carinho e ternura enquanto, junto com uma lágrima solitária balbuciou:



- Obrigada... Isadora.

Bipolaridade — A depressão.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019



Não importa o quanto eu durma. Acordo e meus olhos estão pesados, secos, implorando pra fechar. E mesmo secos, meu nariz tá sempre semi-entupido, estou sempre com o nariz escorrendo, como se tivesse usado pó. Como se o choro estivesse preso em algum canto do peito, perto da garganta e pronto pra subir em segundos.


Virada depressiva.
Porque nem mesmo o sofá da sala consegue ser confortável. Toda luz me é incômoda. Qualquer som — que não seja uma playlist destrutiva montada por mim — me incomoda a ponto de querer arremessar qualquer coisa que quebre. Ouvir o som dos cacos no auge da fúria sim, acalma. 

Conforto? Conforto. Só a minha cama serve. A minha cama e o escuro do meu quarto. Sem sol. Sem janelas abertas. Sem vozes, sem pessoas me enchendo insistindo que eu tenho a vida pela frente e... e eu nem sei o que eles falam depois porque o meu cérebro meio que desliga depois da primeira frase.
Não, não quero ouvir ninguém. Não quero ouvir quem não sabe como é. O quê é. Não quero ouvir quem vai comparar dizendo que a sobrinha da vizinha não tinha um braço, teve malária e mesmo assim se formou em medicina.


Meu silêncio. Respeitem meu silêncio. Respeitem minha angustia, minha raiva, meu desespero, minhas mãos trêmulas. Respeitem o meu não-saber o que fazer comigo. Respeitem os meus calafrios. Respeitem o pânico que seca minha boca e me faz gritar contra o travesseiro enquanto estou só. Se eu os deixasse entrar, se quisessem manter as luzes apagadas e apenas me abraçar, sem nada dizer, talvez eu virasse as chaves. Se soubessem tocar mais a alma e cantar pra ela sem deixar que meus ouvidos escutem, mas...
Não!
Saiam.
Fiquem longe.
E caso dessa vez eu demore demais aqui, se é que me entendem, me transformem em cinzas, por favor.
Não quero que vejam meus ossos.


...


Na verdade...
Eu não queria ter dito isso.
Não pra vocês. Não queria ter colocado isso fora da minha cabeça.
Perdão.
Preciso dormir, ok?
Só mais um pouco.
Eu preciso descansar.




                                            —  Thafnes Bastos
                                     twitter/insta: @thatabastosz