Ouro — parte I

sábado, 6 de abril de 2019

[TW: Dependência química.]
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— Sabe que não é assim que vai resolver isso. Você não vai encontrar nada, Hel, e não vai sair daqui. Conversa comigo. — Disse Janaína a Helena tentando esconder o tom angustiado e assustado por ver a amiga em tamanho surto.

Helena passou por Janaína como se não tivesse ouvido uma palavra. Tremula, voraz, quase em transe, seguia revirando os bolsos de todas as calças e casacos que encontrava em busca de alguns trocados, uma cópia das chaves ou quem sabe um celular. Um celular seria útil. Talvez alguém pudesse passar algo pela fresta da janela do banheiro, já que Janaína ficaria atenta à janela da cozinha. Mas era utopia demais acreditar que Janaína marcaria tamanha bobeira. Estava esperta desde a última overdose. Era cuidadosa em excesso. "O jeito seria esperar Janaína cair no sono ou ir em um daqueles encontros misteriosos dela e então dar uma escapada rápida, só mais um vez não faria tão mal" pensou Helena ao tirar três notas de vinte reais do bolso de uma velha camisa xadrez no fundo do armário, a qual mal lembrava da existência. Seus olhos brilharam ao contemplar as notas. Helena sentia o corpo doer e arrepiar constantemente. Três notas que naquele momento apareceram como vislumbre de um alívio imenso.
Instintivamente, saiu andando rumo a porta quando Janaína a segurou pelo braço.

— Enlouqueceu?!

— Jana, meu corpo tá doendo...

— Hel, a gente veio pra cá pra você ficar livre disso. Lembra há quanto tempo voce tá... qual é o termo? Limpa! E eu estou tão orgulhosa de você! A gente começou a deixar a porta da sala aberta durante o dia enquanto eu estou acordada, você pode fumar seus cigarros no jardim, pintar seus quadros lá fora, confiança, lembra?

— Eu sei, Jana, eu sei, olha... Eu tô vomitando, não aguento isso. Não tô conseguindo, ok? Meu corpo tá fodido e eu tô com calafrios o tempo todo e...

— E não importa, Helena Vincent! Você não vai sair daqui, você precisa ser forte. Você é forte e sabe disso.

— "Não importa"? Foi isso que eu ouvi? — indagou Helena, olhando fixamente Janaína nos olhos enquanto seu braço continuava preso.

— Hel, para com isso. Você entendeu o que eu quis dizer.

— Eu acho que você que não entende...

— Helena... Vem, vamo deitar, ver alguma coisa na TV assim no meio da tarde... — Janaína tentou arrastar Helena pelo braço.

— Janaína, tira a mão de mim. — Respondeu Helena, inesperadamente, ríspida, fria e distante.

Janaína engoliu seco. Não disse mais palavra alguma, apenas concedeu o pedido de Helena. Aproximou-se da porta e girou a chave cuidadosamente, devagar, enquanto observava Helena por cima do ombro.

Helena acendeu um cigarro ao abrir a garrafa de vinho que a família de Janaína guardara por gerações. Uma das poucas coisas que Janaína carregava do passado. Helena sabia, mas não parecia pensar. Não parecia ser a Helena. Era o mesmo corpo, o mesmo cabelo despontado no ombro recém tingido de preto. Os pés sobre outra cadeira. Fumava enquanto bebia no gargalo mesmo o vinho.

Janaína tentou conter as lágrimas, raramente chorava mas ver Helena não sendo Helena era suficiente para fazer seu coração transbordar. Rapidamente, escondeu-se no banho e permitiu que as lágrimas caíssem. Implacáveis.
Chorou pelo que acabara de acontecer.
Chorou por não entender o motivo de ter mantido aquela garrafa por todos esses anos.
Chorou por lembrar constantemente de seus pais nas ultimas noites.
Chorou por não entender mais o que estava acontecendo.
Janaína chorou por talvez nunca ter conseguido entender a si mesma e nunca ter se permitido transbordar daquela forma. E já nem sabia mais o que lavava seu rosto: se a água do chuveiro ou as tantas lágrimas incontroláveis. Soluçava.
Chorou por Helena.
Helena.
Não podia perder tanto tempo no banheiro. Quase uma hora havia se passado. Saiu enrolada na toalha com o rosto inchado torcendo pra que Helena não perguntasse nada naquele momento... E ela não perguntaria.
Helena estava dormindo na cama de Janaína abraçada com o pato de pelúcia que havia ganhado de Janaína há tantos anos atrás.
Uma última lágrima de alívio correu pelo rosto de Janaína. "Vai ficar tudo bem" "vai ficar tudo bem" a moça dos cabelos cor de ouro repetia mentalmente de forma incessante enquanto apertava os olhos, quase que como uma oração.
"Minha filha, até o ouro passa pelo fogo pra ser refinado." Janaína lembrou da frase que sua avó costumava dizer. Essa fase lhe queimava o peito.

Talvez fosse só fogo refinando o ouro.

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