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sexta-feira, 27 de março de 2020

- Seu olfato lhe enganou, raposa, não era Helena.

- Mas era alguém com cheiro parecido.

- Parecido não é ela.

- Eu ainda sinto - Podia quase ver Tsuki com o focinho levantado tentando aspirar mais o cheiro que ela dizia sentir no ar - Tem certeza?

- Claro que tenho!

- Falando sozinha de novo? - Helena veio da sala parando do meu lado - Ta ligada que pode ser sinal de esquizofrenia né?

- Vocês duas vão me enlouquecer um dia.

- Duas? - Ela olhou para os lados - Espera, vamos voltar e começar do começo... com quem estava falando?

- Você não entenderia.

- Tenta.

- Hoje não.

- Janaína Barcelos - Ela tomou a mão na minha - Negação é tão ruim quanto esquizofrenia.

- E desde quando você é psicóloga?

- Nossa - Helena soltou minha mão voltando para dentro de casa - Desculpa então.

- Pronto, Tsuki, satisfeita?

- Com o que? Você ser escrota com a única pessoa que te entende? - A vi se virando de costas para mim, se enrolando, dando um largo suspiro e dormindo. - Não coloca essa na minha conta não, Janaína.

Pronto. Agora a merda toda estada feita e eu ainda tinha um graveto pra mexer nela e fazer feder e espalhar ainda mais. Parabéns, Janaína. Dez horas de parabéns pra você. Trinquei os dentes pronta a explodir quando o celular no bolso vibrou. Um novo e-mail. E-mail. Quem ainda usa isso? Era uma resposta a um e-mail que enviei quase um ano atrás. 

"Prezada Janaína, tudo bom?

Meu nome é Roberto e eu sou locutor na rádio Princesa, seu pedido deu um certo trabalho de conseguir encontrar. No entanto eu me lembro da chuva daquele dia, por isso eu tinha uma vaga ideia do que toquei naquele dia. Depois de muito procurar acabei encontrando em um CD o backup da playlist daquele ano inteira, coisa que eu nem sabia que a rádio guardava. Enfim... no horário aproximado tocou essas três, espero que seja uma delas a da sua lembrança:

Titãs - Os Cegos do Castelo
Goo Goo Dolls - Iris
Rammstein - Ohne Dich

Espero que te ajudar. Precisando de mais informações estou por aqui, agora sei onde procurar haha

Atenciosamente, Roberto Silva."

Confesso que, de todos os e-mails que eu esperava hoje, esse era o último da lista. Talvez ele nem mesmo estivesse ranqueado. Uma dessas duas músicas estava tocando quando batemos. Eu lembro vagamente. Curioso como a memória trai a gente. Quando mais nova tinha feito aula de violão, desenvolvi um ouvido muito bom pra música mas não lembrava daquela música.

Entrei em casa. Porta do quarto fechada. Luz por baixo da porta. Helena cantarolava alguma coisa. Peguei os fones e fui para os fundos da casa. A cidade estava em um silêncio quase surreal. Quase apocalíptico. A única coisa que se ouvia eram algumas motos de entrega passando ora pra um lado ora pro outro. Me sentei na grama, o escuro da noite deixava o céu apenas para a estrelas.

Dei o play na primeira. Não era bem essa. Na segunda Uma orelha se levantou baixando em seguida. Quando o primeiro acorde da terceira música veio Tsuki acordou. O movimento rápido dela foi como de uma raposa real que caça para comer e acabou de ver uma lebre indefesa sair de sua toca.

- Essa música, menina - A voz oscilava entre o grave e o normal - Era essa música.

- Eu sei.

- Ela é bonita... pode repetir, por favor?

- Claro.

Perdi as contas de quantas vezes ouvi a mesma música. A conta perdida também era a de quantas lágrimas fugiram dos meus olhos. A noção do tempo também foi embora junto com todo aquele sentimento preso. Tinha de levar isso para a terapia.

- Sinto cheiro de...

- ... Helena.

- Como me ouviu chegar?

- Seu cheiro.

- Cheiro? - Ela riu enquanto eu, deitada no chão a via de cabeça para baixo - Tudo bem que eu estou suada, mas não é pra tanto... - Helena se cheirou - ... tá, tem um cheirinho, mas nada que possa ser tão absurdo e rastreável.

- Tsuki me falou do cheiro.

- Tsuki... - Ela se sentou ao meu lado - A raposa?

- A própria.

- Menina - Tsuki me cutucou - Confia nela, por favor.

- Tem certeza?

- Tenho.

- De novo falando com ela? - O olhar era mais curioso que julgador - O que ela acha de mim?

- Ela gosta de você.

- E o que mais?

- Tsuki pediu pra agradecer por cuidar de mim.

- Eu que agradeço por cuidar da gente, raposa.

- Hell - Tirei os fones - Preciso te contar uma coisa... uma história...

Hora do salto de fé. Respirei fundo tentando organizar todas as palavras antes de falar, quase como fiz na terapia, só que o divã era um gramado úmido, o teto era o céu e a terapeuta Helena Vincent. Falei e falei.