Entropia

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Não tem como dizer o que acontece. Pode ser um pico de stress, um ápice de riso, qualquer situação, quando você vê a sensação de estar sonhando está lá. Pode parecer confortável não ser atingido por nada, mas não é, é sufocante. Não vou dizer que é a pior sensação da vida porque já senti coisa pior. Mas é angustiante, você não sabe se vai conseguir parar, quando vai passar, se vai passar.

É uma defesa do cérebro antes de acontecer algo pior, penso que deveria durar pouco, acredito que pra maioria das pessoas dure segundos, seja imperceptível, mas pra mim acaba durando horas, dias, semanas. Arrisco dizer que já durou meses um tempo atrás. Arrisco porque afeta a memória e, quando penso nisso, tento ter lembranças antigas e tenho uma, com uns onze pra doze anos, estava em uma churrascaria e tenho a imagem de ter virado pra minha mãe e dito "tô com a impressão que estou sonhando", é só um flash, uma cena de, no máximo, cinco segundos.

Depois disso é um grande campo branco. Não lembro de mais nada. Minto, pra não dizer que não lembro de absolutamente nada eu tenho mais flashes de cinco segundos nos anos que se seguiram. Um no banheiro, um na escola... de resto não tenho nada. As coisas que alego ter passado ou é coisa que todo mundo passou, história que alguém disse que passei ou coisa que eu invento. Aprendi a inventar boas histórias sobre meu passado.

Se isso ficasse só no passado mais remoto maravilha, porém não é o que anda acontecendo. Todas as lembranças de anos recentes acabam se tornando algo branco, vazio. Ou, pra não perder completamente nada, ficam aqueles flashes. E o mais foda é que, de uns dois anos pra cá, começou a ficar mais intenso. Graças à internet descobri um possível nome pra isso: despersonalização.

Não gosto de usar muleta de doença, mas caso eu realmente tenha essa eu não sei o que fazer. Não sei como agir, não sei pra onde ir ou pra quem pedir ajuda. Houve uma época que eu conseguia sair das crises mais intensas provocando dor física. Hoje não funciona mais, é como se fosse uma pedra caindo numa lagoa: faz as ondas e logo volta tudo ao normal. Quase como se meu cérebro buscasse uma entropia. Entropia. Vou chamar isso aqui de entropia.

Nada é real. Ou é? Tem dias (como hoje) que eu vou acordar de um coma ou algo parecido lá nos onze anos. Só que acho que minha cabeça não é tão inventiva a ponto de criar tantos anos a frente... se bem que ela criou segundos de anos. Merda. Não sei mais o que fazer. E ninguém vai ter a resposta. Quando perguntarem o que é eu prefiro dizer que não é nada ao ter que explicar tudo isso... até porque ninguém vai entender mesmo. Então eu prefiro pegar, mentir tudo e pronto, ainda está funcionando.

Não. Não está. Sim. Eu estou em total conflito. E não é entre personalidades, é entre eu e eu. É diante de um espelho imaginário. E nesses momentos eu tenho a nítida impressão de que eu não existo e os versos de Pessoa (sempre ele e sempre esses versos!) me vem: Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo.

Já não sei mais sobre o que estou escrevendo. Eu devia estar trabalhando, mas zero ânimo de trabalhar. Amo meu emprego, mas nos últimos dias tudo tem sido um grande nada. E aí a urgência de fazer algo que marque, que seja realmente diferenciado fervilha. Mas eu não posso fazer e, quando vejo, o dia passou e não fiz nada. De novo. Talvez esse campo vazio de lembranças seja justamente por isso, por eu nunca ter feito nada. E Pessoa vem de novo.

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