a carta que não sei escrever.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Estou há horas rabiscando palavras em uma folha em branco. Na medida em que as palavras surgem, as folhas somem. Porque não tenho nada que apague o que a caneta escreveu na folha em branco, assim como nada retira as marcas que tenho, nem desfaz os caminhos que a vida tomou.
Eu poderia riscar as palavras e continuar escrevendo, as árvores agradeceriam. Eu poderia escrever esta carta em um computador. Eu poderia simplesmente não escrever. Mas não, nada disso. Aqui estou insistentemente diante de uma janela fechada, lateral, no meu quarto de dormir; com uma caneca de café pra tentar me impedir de pegar no sono enquanto não termine de escrever.
Eu fiz uma promessa e só depois de prometer eu descobri o quanto é difícil manter a palavra. Mas não foi pra isso que comecei a escrever. Inicialmente eu queria falar sobre os dias de sol que tenho tido, sobre as tardes banhada no rio, sobre as noites olhando o céu estrelado no jardim que eu não tenho. Mas é, não tenho o jardim, nem o rio, nem os dias de sol.
Aqui tem feito frio e frio. Só frio. O dia é repleto de nuvem e as noites também. No trabalho (estou trabalhando!) as pessoas dizem que eu cheguei e trouxe o frio, e eu que pensei que gostaria disso, estou odiando.
Não sei se é pela falta de calor humano que eu nunca soube que gostava, ou se pela falta de felicidade na escolha que fiz. Eu achei que não sentiria saudades de casa, mas eu sinto saudade até dos meus vizinhos barulhentos.
Tá, isso é exagero e mentira. Eu sou dramática. Ainda sou dramática. Eu vim embora sem dó e nem piedade, com algum dinheiro que economizei por algum tempo. Larguei tanta coisa aí, que eu nem sei. Pior que eu nem queria vir, mas também não queria ficar aí e quando vi que existia a chance de sobreviver, não pensei duas vezes e aqui estou.
Eu deveria ter pensado melhor. A gente não deveria sobreviver apenas. Viver é bom, você sempre me dizia, mas como me afastei, não ouço mais isso e ninguém me faz acreditar que existe sol atrás dessas nuvens. Como dizia você, eu tenho muito que aprender.
Tenho recebido as cartas. Desculpa não responder. Ou não desculpe, eu não tenho certeza se me arrependo. Eu não sei o que dizer... Pra você ter ideia, estou aqui escrevendo e acho que estou falando demais e dizendo nada. Mas pelo menos você fica sabendo o que quer: eu estou bem.
Consegui um trabalho numa editora aqui perto (que ironia: eu numa editora). Fico levando papéis pra todo lado, pegando café, fazendo café. Nada interessante e também não tem o glamour dos filmes onde a mulher acorda atrasada, linda, corre e toma seu café na rua e chega no trabalho toda linda em seu salto alto. Eu tomo meu café em casa, porque o meu gasto inconsequente de dinheiro, como você tanto disse que iria me ferrar, me ferrou. Meu dinheiro começou a acabar, comecei a falir em terra estrangeira. Procurei trabalho e agora economizo. Pelo menos o dinheiro serve pra comprar uns congelados que estoco e pagar o aluguel.
A casa é pequena, seguem fotos como você havia pedido também. Não tem espaço aqui pra você.
Mentira, tem sim. Mas você é sábio e não vai largar tudo como eu fiz.
OK, desculpa. Fugi a carta inteira do meu objetivo. Eu não sabia ao certo que tinha um, mas agora eu percebi que estou fugindo. Eu já rabisquei sobre isso nas outras folhas... Sabe aquele assunto que você acha que precisa falar? Se estivéssemos perto um do outro eu veria nos seus olhos que não precisava falar nada, que você entendia, leria suas expressões e você as minhas. Mas estamos distantes. Distantes mesmo e não só fisicamente. Eu fiz questão de me afastar de você e de todos daí. Porque achei que assim me afastaria do meu maior problema: eu.
Achei que pegando aquele avião e descendo em terra desconhecida eu iria me tornar desconhecida de mim. Me enganei. E só agora no final dessa carta eu estou conseguindo realmente encontrar palavras pra dizer. Eu estou um pouco bem, sim, consigo viver os dias e valeu a pena ter vindo pra cá. Eu aprendi com isso que na vida é tudo ou nada. Você costumava dizer que eu era desequilibrada. Talvez esteja mais, mas se te consola, não me sujo com apenas um cigarro.
Não sei como finalizar essa carta. Não sei o que te dizer... Desculpa não ligar, não responder, não falar com ninguém, com nenhum de vocês.
Às vezes eu ligo para os meus pais. Eles disseram que meu irmão irá se formar. Você vai, né? Ele ficaria muito feliz. Você não é só meu amigo. E não precisa arrumar a minha bagunça.
Manda um beijo para a Camila, um abraço no João. Ah, e o Victor. Ah, Victor... O que dizer sobre ele? Não sei. Cole chiclete no cabelo de todas as namoradas que ele arrumar, por favor. Eu ainda amo vocês. E ainda odeio as namoradas do Victor (óbvio!).
E a você que me escreve com tanta frequência, sem desistir de mim: não desespere. Você tem a minha gratidão e o meu coração. 

Estou aqui desligada de mim, aprendendo alguma coisa, fugindo da vida.
Mas eu volto e arrumo a bagunça que fiz, não me esperem.

Com carinho, 
Marcela.