Grito Silencioso

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Era noite, mais uma noite fria e escura. Eu andava com mais três amigos maconheiros de longa data. Passavamos em frente a casas grandes e elegantes com muro baixo. Pensei por uns instantes que era arriscado andar fumando maconha por lá, devia ter ronda policial o tempo todo. Meus amigos riam, Mike já estava bêbado, em uma brincadeira boba de jogar um isqueiro para o Rafa, acabou deixando o isqueiro cair dentro de uma das casas grandes. Quem reclamou foi o Derick, que era dono daquela porcariazinha que segundo ele, custava mais de trezentos reais. Os três discutiam enquanto eu permanecia em silêncio com as mãos nos bolsos da blusa. Era assim que eu curtia as minhas brisas, em silêncio.
Como um isqueiro podia ser tão caro? Era bonitinho, parecia uma miniatura de pistola. Tinha o nome de alguma marca gravada em ouro no cano. Quando se "puxava" o gatilho o fogo aparecia. Era possível também regular a intensidade do fogo ou usar o isqueiro como lanterna. Ainda assim achei que 300 reais era muito dinheiro.
 Derick começou a choramingar e discutir com com o Mike. Rafa não sabia de que lado ficar. Não demorou pra virar uma confusão. Nenhum dos três queria pular na casa e recuperar o tal isqueiro caro. Decidi fazer esse favor ao caçula do grupo. Respirei fundo e olhei para a casa, o muro não era tão baixo. Não entendi como Mike poderia ter deixado algo cair lá dentro sem ter a intenção de fazer isso. Bem, o muro alto não seria problema. Sempre fui acostumada a escalar muros, subir em árvores e lugares altos. Por sorte havia uma árvore na calçada cujos galhos davam acesso ao jardim da casa. Planejei rapidamente como faria, tomei fôlego e subi na árvore. Quando estava na ponta de um galho, a vista da casa me assustou. O jardim era enorme. A casa era grande, mas parecia morta. Havia uma espécie de córrego no jardim, justamente onde imaginei que o isqueiro havia caído. O corrego era um declive que levava a uma portela que deveria ser o porão. Droga, a porcaria do isqueiro deve ter escorregado por lá. A luz do porão estava acesa, estranho. Se houvesse alguém na casa, no mínimo chamariam a polícia. Eu não estava mais com drogas e nem pretendia roubar, talvez passasse a noite na cadeia, tanto faz. Saltei no jardim. A queda foi um tanto alta. Procurei o isqueiro pelo jardim, A iluminação era péssima. Não estava lá. Olhei para o córrego, logo fui até a portinhola do porão, as luzes apagaram. 
Sinto como se tivesse tido um lapso de memória naquele momento, não sei o que aconteceu, quando me dei conta já estava no meio do porão que não era bem um porão. Tinha cara de piso subterrâneo de fábrica. Tinha cheiro de açougue. Estar lá me causava arrepios. Não era hora pra ser covarde, eu precisava ir embora rápido. Passar a noite na cadeia pela segunda vez na semana não era uma boa ideia.
Levantei e dei alguns passos por aquele lugar, mal conseguia me concentrar no motivo de estar lá. Odiei o Mike, o Derick e até o Rafa por alguns segundos. Eles deveriam ser homens o suficiente pra ir atrás daquela porcaria.
 Tropecei em algo, caí. Inclinei a cabeça tentado saber no que tinha tropeçado. Antes que eu olhasse, ouvi uma voz macia e levemente infantil:
- Oi!
Arrepiei. Era uma garota, certamente. Já imaginei a polícia chegando e fazendo varias perguntas. O Derick era menor de idade. Céus, eu não devia ter entrado lá! Tentei me explicar:
"- Oi! É... Ãn... Olha, não é o que você está pensando, eu não vim aqui roubar nada. Um amigo deixou um objeto cair aqui e só vim procurar mas já estou indo embora." - Apoiei as mãos no chão para levantar, olhei para trás. Era uma garota. Ela estava sentada com os braços em volta dos joelhos me olhando com um sorriso fraternal. Seus cabelos eram curtos, seguiam o nível do rosto. Loiros e extremamente lisos. Ela era tão branca e magra que chegava a assustar. Usava uma regata cinza grande e suja e um short com bolsos rasgados que ficava largo nela. Aquelas roupas eram velhas. Não entendi por quê uma garota que morava em uma casa tão grande usaria roupas tão velhas. Que seja, eu precisava ir embora. Me levantei pedindo desculpas e dizendo que estava de saída, ela me interrompeu segurando a barra da minha calça enquanto eu passava por ela. Que gesto infantil! Quantos anos ela teria? Doze? Treze talvez?
- Tudo bem, você não precisa ir embora agora. - ela mostrou um sorriso amarelo com um olhar de quem implora por atenção. - Eu não vou chamar ninguém. Fica aqui. - Ela puxou a barra da minha calça com mais força. A situação começou a me deixar nervosa. Quando eu olhava para ela, sentia pena. Que diabos estava acontecendo ali?
- Olha... Eu preciso ir embora. Não posso ficar, nem sei o que você faz aqui embaixo... Garota.
- Sally. Meu nome é Sally. - Ela me corrigiu sorrindo. - Eu vou te contar. Não vá agora. Eu estou presa aqui. Não tenho como sair. - Chequei o "porão", havia várias portas, antes que eu questionasse, ela prosseguiu - Não posso sair daqui porque estou morta.
Eu ri alto e histericamente naquele momento. Que piada mais estúpida! As crianças de hoje devem assistir filmes demais. Quando me coloquei de pé, a portela que dava acesso a saída se fechou, assim, sozinha. Tremi. Já era loucura demais pra mim. O som da porta se fechando cortou o meu riso instantaneamente. Aquela droga devia ser mais forte do que eu imaginei. Jurei a mim mesma que não fumaria maconha por um bom tempo depois daquilo. Tentei me convencer de que era só uma badtrip e que logo iria passar. A menina puxou meu braço e me disse pra ficar quieta, caí sentada ao lado dela. Ouvi a voz de um homem.
- Sally! Sally, venha aqui querida. Não faça assim com o papai. Esqueceu que eu cuido de você e da sua irmã? Nós três somos uma família. Apareça. Sally!
Olhei para Sally. Ela estava encolhida do meu lado, apertando o meu braço e tremendo. Tentei puxar o braço enquanto falei baixinho:
- Ei, o seu pai vai chamar a polícia, eu preciso sair daqui!
- ELE NÃO É O MEU PAI! - Ela gritou. Fiquei pálida, olhei na direção do homem. Ele não ouviu. Como assim? Sally continuou
- Era meu padrasto. Pai da minha irmã mais nova. Ele matou a minha mãe pra ficar com isso tudo pra ele.
- O-o quê?! - gaguejei em choque - e por que você não chamou a polícia? Porque não conta a alguém?
- Estou contando pra você agora. Shhh! Presta atenção. - Ela colocou o indicador sobre meus lábios, em seguida apontando para o padrasto.
- Sally! Aí está você, sua travessa! - Não pude acreditar no que meus olhos viam. Era a Sally se aproximando do padrasto que a puxou pelo braço até uma das salas. Ela estava do meu lado, mas eu a via ali, a minha frente. - Você está no meu campo de memórias, por isso está vendo o que vivi - Ela justificou.
As cenas seguintes me matavam por dentro. O tal homem sentou-se em uma cadeira. Sally ajoelhou-se diante dele. Não. Eu não podia ver mais. A voz dele me dava nojo. - Faça isso direito dessa vez, sua pequena vadia! - Abracei Sally. Gritei um palavrão. O homem inclinou a cabeça e empurrou Sally enquanto subia as calças com a outra mão. Ela caiu, bateu a testa de uma forma que deixou um rastro de sangue na parede. O padrasto de Sally parecia furioso. Pegou um alicate e saiu atrás da menina. No instante em que gritei, tudo sumiu.
- Você imagina o que aconteceu depois, não é? - Sally perguntou me encarando conformada.
- Esse filho da puta te bateu? Foi assim que você morreu? - Eu percebi que meu rosto estava molhado.
- Não. - Ela deu um sorriso triste de canto. - Eu bem que gostaria de ter morrido aí, mas tinha 14 anos. Morri no meu aniversario de quinze anos. Desde então todos os dias é meu aniversario. O tempo nunca mais passou. Ninguém nunca ouviu meus gritos. Ele arrancou algum dos meus dentes. Disse que "atrapalhava o serviço".
Será que ela conseguia ouvir as palavras que saíam da própria boca? Senti vontade de vomitar. As coisas à minha volta foram escurecendo, minhas mãos e pés formigaram.
- Você está bem? - Sally me olhou com os olhos arregalados tocando o meu rosto.
- Se você está morta, por quê eu consigo te ver, te tocar e assistir tuas lembranças? - Jurei que fosse desmaiar ali.
- Você entrou no território de uma alma que morreu em segredo. Que carregou sozinha tanta dor sem nunca contar a ninguém. Que não tem quem pensou sequer em fazer justiça por ela.
Eu estava tonta demais pra discordar. Já tinha aceitado o fato de ter exagerado nas drogas. Eu só queria que passasse. Perguntei o que imaginei que fosse me tirar dali.
- Sally... Como você morreu?
Outra vez. Vi o maldito do homem jogar Sally no chão do porão enquanto alguma criança chorava ao fundo. Sally gritou. Ele rasgou as roupas dela. Ele a violentou. Em dado momento ela parou de gritar e apenas esperou que acabasse. Havia sangue no chão. Quando ele terminou, puxou Sally, nua mesmo. Pediu que fosse buscar álcool. Quando ela trouxe, ele deu uma bofetada em seu rosto que a fez cair em cima de suas roupas. Jogou álcool sobre ela e por todo aquele lugar...  Então acendeu um fósforo. Me senti no inferno. Sally segurou minha mão e disse "obrigada por ter me ouvido, já posso ir em paz." O espírito dela que estava ali comigo sumiu. Tudo o que restou foram as chamas e a fumaça que me sufocava enquanto eu gritava e chorava.
Acordei, minha roupa e meu travesseiro estavam molhados. Agradeci por ter sido um pesadelo. Chorei cerca de dez minutos. Coloquei os pés para fora da cama e pisei em algo. Era o isqueiro do Derick.



Por Annelouise Amelie

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