Vento da Mudança

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Ele: Hoje pela manhã dei um beijo nela enquanto ela ainda dormia, peguei as chaves do carro e segui para o trabalho. O trânsito não facilitava o trajeto, como esperado. Era cedo, mas você deve saber como as grandes metrópoles funcionam: as avenidas podem parar a qualquer momento. E ali, entre aquele mar de carros, comecei a lembrar de quando a conheci. Permiti que a minha mente regressasse no tempo. Fizemos tantos planos! Eu era um rebelde-quase-totalmente-irresponsável, e acredito que ela ainda me olhe dessa forma, mas a verdade não é bem essa. Ela me mudou, me fez crescer. E eu ainda custo a entender como ela que é tão fina consegue aturar um moleque maltrapilho feito eu. Ela sempre foi tudo o que eu nunca soube ser, ela era completa, eu era só um cara que tocava bateria em uma banda. Quase fomos expulsos do prédio dois meses depois de ter alugado o apartamento. Foi ela quem resolveu os problemas com o síndico e se desculpou pelo barulho de música alta que toda noite incomodava os vizinhos. Eu nunca disse, mas eu sempre gostei de contrariar o que ela fala porque adoro as expressões e argumentos dela. Adoro ver a forma como ela levanta a sobrancelha esquerda e aperta o lábio antes de começar aqueles longos discursos cheios de palavras difíceis. Será que ela me via como mais um dos alunos que ela tinha que pôr na linha? Eu nunca vou saber. Como pode uma mulher tão linda ser tão inteligente? Se um dia tivéssemos uma filha, eu gostaria que fosse como ela é. 


Ela: Eu acordava com o beijo suave dele todos os dias de manhã. Sempre via o relógio e imaginava se ele não podia ter um emprego mais perto de casa. Embora ele não tivesse que esperar ônibus, metrô nem nada a vida não era tão simples. Ouvi ele tomar o café e sair. Ainda tinha mais alguns minutos antes de levantar e me arrumar para sair para o colégio. Uma onda de nostalgia me invadiu, ele era um rebelde, desses que saem berrando pela rua altas horas da madrugada apenas para acordar todos. Ainda o via como um menino, apesar do tempo que estávamos juntos. Pouco mais de dois anos. Suspirei tendo meus devaneios rompidos pelo despertador. Coragem, só falta oito aulas. Me levantei, o dia passava no automático. Na hora do almoço chequei se havia trazido o pedido de exame. A tarde colocaria uma pedra sobre essa dúvida que me assolava tanto e me deixava com o sono curto. O dia voou, estava com o envelope em minhas mãos. Abro aqui? Minhas pernas me guiaram até o ponto de ônibus. Não abriria nada dentro do ônibus de volta para casa, não bastasse segurar minha já bem pesada bolsa cheia de livros e provas para corrigir, ainda teria que segurar a outra bolsa e abrir um envelope. Só se eu fosse um octópode e, definitivamente, não era o caso. Ao chegar em casa tudo estava sereno, calmo, como eu havia deixado quando saí de manhã. Ignorei todo o trabalho doméstico para dar atenção àquele envelope. O abri checando meu nome, diversos termos técnicos, nome de médico, do exame, das probabilidades e da exatidão do mesmo. Quanto desperdício de papel. Somente na terceira folha é que o resultado se mostrava óbvio para o paciente. Não contive o riso, o choro, euforia, eu estava tão feliz que se explodisse minha felicidade inundaria não só esse cômodo como o planeta, o universo, a criação inteira. Em letras maiúsculas um único adjetivo após a palavra "Grávida".


Ele: - A luz verde do semáforo acendeu e as centenas de máquinas que me rodeavam saíram a minha frente. Deixei o carro morrer quando tive meus pensamentos interrompidos pelo som de uma nova SMS no celular. Era ela. Queria conversar. O que seria dessa vez? Mais reclamações do síndico? Havia muito tempo que eu não escutava música em um volume muito alto. Talvez o problema agora fosse os meus amigos. Ela nunca gostou muito deles, reconheço que os caras eram folgados e tinham mania de descer no elevador completamente bêbados mexendo com as senhoras idosas. Tentei me preparar para a bronca, dei partida novamente no carro e segui até o trabalho, o dia parecia inacabável. 


Ela: Olhei o relógio, ainda faltavam algumas horas para que ele viesse. Como eu contaria a notícia? Ele sempre foi irresponsável, desde os tempos que eu fazia faculdade até alguns meses atrás. Ele era um rebelde. Incontestavelmente rebelde e, talvez fosse por esse jeito - como dizia a minha mãe - um pouco "punk" que eu tenha me encantado. Maldita mania de contrariar tudo. Qual graça ele via nisso? De qualquer forma, o que realmente me preocupava era a dúvida: como ele se sentiria ao descobrir que seria pai? Todas as vezes que eu mencionava o assunto "filhos", ele torcia o nariz e mudava de assunto. Bem, havia um ser dentro de mim e eu não era a única responsável por isso. Ele tinha que saber o mais rápido possível. Como as mocinhas de novela contavam? Deixavam o mocinho saber, eles se abraçavam, choravam juntos e viviam felizes para sempre, era, normalmente o fim da novela. O mesmo vale para livros, filmes... Toda a história da literatura a descoberta - ou revelação - de uma gravidez era o fim do livro, que era o clássico "felizes para sempre". Porém quando era antes disso, sempre era um revés para a mocinha, que acabava ou expulsa de casa ou sofria tudo sozinha... Terrível. Mandei uma SMS dizendo que precisávamos conversar. Não tínhamos brigas haviam alguns meses, então a resposta dele foi como eu esperava "o quê aconteceu?". Chequei na minha bolsa, resolvi dar um pulo no mercado e fazer um belo de um jantar. E, enquanto as panelas expulsavam vapores me benzi, orei, fiz promessas... Essas coisas de menina que foi criada com mãe católica fervorosa. Tomei um banho. Deixei o envelope sobre a mesa, somente com a última folha, onde o resultado era óbvio. Deixei para entregar durante a sobremesa. Isso. Assim que ele chegou o encaminhei ao banho e servi a mesa. O coração veio a boca. E se eu sumisse com o envelope? Não. Sem covardice agora. Eu seria a primeira mocinha a sobreviver a uma gravidez no meio do livro e seguiria firme até o felizes para sempre.


Ele: Quando abri a porta do apartamento, joguei as chaves sobre a mesa e tirei aquele terno horrível que me obrigavam a usar. Soltei os cabelos, me recusava a corta-los, não existia empresa capaz de me fazer mudar o ponto de vista. Tomei um banho rápido e corri para a mesa, faminto e curioso, esperando pelo quê ela teria a dizer. Sequer cogitei a hipótese de perguntar a ela como fora o seu dia. Estava certo de que ela brigaria comigo e me diria que já é momento de crescer. Sentei a mesa, ela parecia nervosa, inquieta, eu diria. Nunca a tinha visto daquela forma. Será que era grave? Eu tentava perguntar algo e ela ficava calada. Engoli a comida sem nem saborear, pra ser honesto, nem lembro o que comemos. Só lembro das mãos dela completamente trêmulas vindo em minha direção, segurando um envelope. Respirei fundo. 


Ela: Nos sentamos para cear. Jantamos, ele ficou curioso sobre o quê eu tinha para contar. Trouxe a sobremesa, junto dela o envelope. Entreguei a ele. Minha pulsação disparou, empalideci completamente. No instante que ele abria o envelope meu coração parou. Ele abriu a folha. A respiração ofegou. A minha foi junto. Ele não teve palavras. As lágrimas escorriam dos olhos dele juntamente com um sorriso que eu já não via tinha algum tempo. A rotina sempre acabava com alguma coisa dos casais. Mas agora... Algo completamente fora da rotina. Nos abraçamos com a folha entre a gente. Ele alisava meus cabelos e me fazia juras de amor que eu respondia no mesmo tom, na mesma emoção, ou, como diziam meus alunos "na mesma vibe". Desejei que aquele momento durasse eternamente.


Ele: Naquela noite, descobri que a minha vida mudaria para sempre. Descobri que seria pai. Eu, que terminei o ensino médio por pressão dos meus pais, porque na verdade sempre quis ser músico. Eu, que nunca me importei muito com as coisas. Eu, que além de tocar bateria, a única outra coisa na qual me saía bem, era em jogar video game. Esse mané teria um bebê pra segurar nos braços. De imediato, levei um susto. Mas imaginei uma mãozinha pequena tocando a minha e me senti completo. Agora sim, éramos uma família. Hoje, Helena completa três anos. Ela é a garotinha de três anos mais linda que já vi. Ela tem os cabelinhos claros exatamente como os da mãe dela. E ela tem aquela mania de levantar a sobrancelha esquerda quando fica emburrada com alguma coisa. Como é que eu posso amar tanto um ser tão pequeno? Helena me ensinou sobre tudo. A minha filha me ensinou o que as empresas, a rotina e todo o cotidiano à minha volta tentavam me fazer esquecer. Minha esposa e eu costumávamos deitar debaixo da cerejeira em que nos beijamos pela primeira vez. Eu deitava no colo dela, e Helena apoiava a cabecinha sobre a minha barriga, então ficávamos nós três contando as estrelas e dando nome a elas. Ainda ontem, vi Helena vestida de bailarina me encarando com aqueles olhos verdes - que talvez seja uma das poucas coisas que ela herdou de mim - enquanto puxava minha camisa me chamando pra mostrar o que tinha aprendido. Eu vi a minha pequena das bochechas rosadas andando com a pontinha dos pés com as mãos sobre a cabeça. Naquele momento descobri que as vezes temos medo de que algo inesperado aconteça, medo a ponto de mudar de assunto toda vez que alguém tenta falar sobre. E aquele meu medo de ser responsável e cuidar, se transformou no presente mais bonito que alguém poderia receber. Eu só posso afirmar algo: se eu morresse amanhã, eu morreria sabendo que tive a melhor vida que qualquer um pode imaginar. Feliz aniversário, minha filha! Eu amo você.


Escrito por Luís Mitzco e Thata Bastos.

1 comentários:

Mário Amâncio de Azevedo disse...

Que fofo , amei bem gostoso de ler.
Parabénsm escreva sempre Thata, morrendo de ciúmes, pois um dia te convidei a escrever juntos e nada.rs